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04/03/2024 às 19h22min - Atualizada em 04/03/2024 às 18h38min

Cultura, Hegemonia e ‘Americanização’: O que há por trás dos Remakes Estadunidenses?

Refilmagens americanas refletem a necessidade do país de se manter soberano na indústria cinematográfica

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Foto: Reprodução / Jornalismo Júnior)

1936. Enquanto o mundo testemunhara um clima de entusiasmo no campo das artes, graças ao grande caixote a manivela que permitira captar imagens e projetá-las em tela, Walter Benjamin expressava seu temor pelos novos rumos que a arte tomara. Em sua obra, A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, o sociólogo alemão alega que o valor artístico de uma criação se perde ao ser replicado. Apesar da clara oposição a manifestações artísticas populares, como a fotografia e o cinema — o que evidencia um olhar elitizado a respeito do acesso e consumo de arte —, Benjamin foi um dos primeiros a chamar atenção para o futuro da criação artística frente a máquinas cada vez mais hábeis. No entanto, à medida que as tecnologias avançam e redefinem as estruturas do nosso cotidiano, a preocupação de Benjamin se provara cada vez mais justa. 

 

Desde as primeiras películas, transformações e retomadas compõem o fazer cinematográfico: uma arte capaz de eternizar registros — de vida e de criação — que transcendem os limites do real. É uma espécie de sonho, do qual Méliès jamais imaginara despertar, e que continua a espalhar lampejos de pura magia. Com o passar dos anos, conforme a sétima arte saia do experimental para entrar no circuito de produção em massa, é impossível negar a forte influência de Hollywood na Indústria Cultural e no seu papel em perpetuar o protagonismo estadunidense.

 

O que filmes como Vanilla Sky (2001), de Cameron Crowe, Os Infiltrados (2002), dirigido por Martin Scorsese e Millenium (2011), de David Fincher, têm em comum é que os três títulos compartilham, além do sucesso, a mesma origem: são refilmagens de obras estrangeiras. Embora não seja novidade na indústria, a produção de remakes têm crescido e se tornado uma aposta para a recuperação do setor audiovisual pós-pandemia, graças ao apelo popular. A escolha, ainda que pareça segura em uma era de blockbusters sem fim, é um reflexo de como Hollywood se acomodou criativamente e escancara a prática quase predatória de manter a hegemonia americana às custas de produções estrangeiras. 

 

Tipo exportação: maquiado antes de ser vendido

Ao fazer sucesso em seu país de origem e cair nas graças da crítica, a obra tem seus direitos autorais comprados por produtores norte-americanos — por um valor irrisório comparado ao lucro a ser obtido — e é relançado com o selo de um grande estúdio de Hollywood. A grande questão a ser problematizada é que todos os filmes submetidos a essa lógica passam por um processo de “Americanização”, em que se reescreve o roteiro a fim de eliminar os elementos “exóticos” e adaptá-los ao estilo de vida americano, com um elenco e ambientação estadunidenses — o que empobrece a narrativa.

 

Esse modus operandi é, infelizmente, comum nas adaptações fora do eixo norte-americano e resulta, além do apagamento da obra original — graças à posição privilegiada que Hollywood assume na padronização do gosto, comportamento global e bilheteria — na apropriação cultural que, ora reforça estereótipos, ora descaracteriza a obra, retirando por completo suas referências culturais. É o caso de O Chamado (2002), remake da obra japonesa Ringu (1998), e o insosso Oldboy - Dias de Vingança (2013), adaptação do longa de 2005 do aclamadíssimo Park Chan-Wook. 

 

O terror que deu vida à Sadako — batizada de “Samara” na versão americana — mergulha no folclore japonês e é um dos expoentes do cinema de horror do país, conhecido pelos seus fantasmas, possessões e construção gradativa de tensão — características que foram, pouco a pouco, incorporadas por Hollywood. Enquanto a obra original preserva os elementos e o estilo narrativo do cinema japonês, a versão americana conta a história sob artifícios já conhecidos: ritmo acelerado, cenas de ação e excesso de jumpscares.   

 

A apropriação também é presente em Oldboy – Dias de Vingança, mas com uma descaracterização mais nítida. Além da escalação de um elenco não asiático — reforçando, mais uma vez, a figura hegemônica do americano no centro das narrativas — o filme tenta trazer aspectos da cultura sul-coreana para uma ambientação estadunidense sem muito cuidado. A escolha do martelo pelo personagem Dae-su nas cenas de luta não é meramente estética: está relacionada com a legislação coreana, que proíbe o uso de armas de fogo. Manter esse recurso na adaptação causa estranhamento e produz o efeito contrário do que se espera: chega a ser tosco pois não há uma justificativa plausível para a decisão no longa. Além disso, referências culturais específicas, fora do senso comum americano, foram retiradas, como a cena do polvo engolido vivo.

 

Pode parecer sutil, mas o ponto a ser discutido é como os ícones americanos conseguem ser tão fortes no imaginário popular a ponto de criar, inconscientemente, uma métrica de expectativa que quase sempre recai para o cinema hollywoodiano. No ano passado, a revista Piauí divulgou uma estatística preocupante a respeito do cenário audiovisual brasileiro: a cada 100 filmes exibidos nas salas de cinema, somente 13 são produções nacionais. O número mostra não só a urgência em investir em políticas públicas para fortalecer o cinema nacional, como nos leva a refletir sobre como o nosso olhar para arte e para o mundo é, muitas vezes, um reflexo dessa colonização cultural. 

 

O espectador busca por uma familiaridade que não é própria da sua realidade, mas que foi amplamente disseminada como um modelo a ser seguido. Tudo fora dele é recebido com estranhamento e até certo desdém, como as próprias películas brasileiras que, muitas vezes, passam a ser valorizadas dentro do próprio país se conquistarem prestígio internacional. O longa-metragem Central do Brasil (1998), vencedor do Globo de Ouro e Bafta, e Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro são exemplos de obras de destaque, mas que ainda são exceções à regra no que diz respeito à recepção do público. 

 

Uma pergunta interessante a se fazer não é se consumimos filmes fora do circuito tradicional, mas o porquê não acessamos essas obras com a mesma facilidade das produções hollywoodianas. 

 

Uma porta que se abre 



Em fevereiro de 2020, na noite da 92ª edição do Oscar, o longa sul-coreano Parasita (2019) foi o vencedor de quatro categorias, incluindo a de Melhor Filme e entrou para a história da premiação como o primeiro filme não falado em língua inglesa a vencer a categoria mais importante da noite. Em discurso, o diretor Bong Joon-ho aproveitou para cutucar os espectadores americanos: “Quando vocês superarem a barreira de dois centímetros de altura das legendas, serão apresentados a muitos outros filmes maravilhosos”, disse. 

 

A fala de Bong expôs, de forma precisa, aquilo que a indústria estadunidense, por muito tempo, evitou falar sobre: a resistência do público em consumir filmes não ingleses e a dificuldade de exibição dessas obras nas salas de cinema do país. Mas de onde vem essa relutância? A pergunta é retórica: demorou mais de nove décadas para Hollywood romper com o culto de exclusividade americana da categoria de Melhor Filme. Parasita é um sinal de que a indústria cinematográfica está se abrindo para as produções de outros lugares do mundo. O mercado das adaptações, porém, ainda se mantém forte na indústria, mesmo que, por vezes, seja alvo de contestação do público. 

 

No ano seguinte, O filme dinamarquês Druk - Mais uma rodada (2020), dirigido por Thomas Vinterberg e protagonizado pelo ator Mads Mikkelsen, venceu na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar 2021. Um dia depois da sua vitória, foi anunciado que os direitos do longa-metragem foram vendidos para a Appian Way, produtora de Leonardo DiCaprio. A estreia de um remake foi anunciada e quem irá estrelar o longa é o próprio astro de Lobo de Wall Street. A rápida reação da Appian Way desagradou internautas que questionaram as razões por trás da imediata aquisição americana. 

 

Outra vítima da reprodução desenfreada de grandes sucessos estrangeiros, sem qualquer esclarecimento, é Speak No Evil (2022), thriller dinamarquês dirigido por Christian Tafdrup. O longa aborda a relação entre uma família dinamarquesa e neerlandesa, à medida que choques culturais e acontecimentos sinistros se desenvolvem. Em abril de 2023, foi anunciado que o remake será produzido pela Blumhouse e estrelará James McAvoy (‘Fragmentado’). Como que o cinema estadunidense vai reproduzir uma obra extremamente conectada com suas raízes e cujo clímax depende desses elementos é um mistério. A julgar pelo histórico recente das adaptações, teremos mais uma obra descolada da sua realidade que recai aos velhos modismos americanos. 

 

A abertura da indústria cinematográfica para narrativas culturalmente diversas, com elenco e ambientação próprias, e que possam ter espaços verdadeiramente ocupados por cineastas e atores estrangeiros, caminha a passos lentos, mas com a ascensão dos streamings e a popularização de obras estrangeiras nas plataformas, o rompimento das “barreiras” da legenda apontadas por Bong Joon-ho talvez não seja uma realidade tão distante. As provocações são importantes para, pouco a pouco, repensar a construção do nosso gosto e expandir o olhar para novos horizontes da sétima arte — que são complexos, brilhantes e tão atrativos quanto os blockbusters do Tio Sam.

 

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