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07/07/2021 às 19h02min - Atualizada em 07/07/2021 às 18h55min

A galeria de uma vida que não é mais minha

De repente ficamos presos em uma ficção ruim, uma infeliz existência em que o medo e as mentiras são nossos companheiros diários

Hellen Vasconcelos - Editado por Andrieli Torres
Foto: Reprodução/Internet

Rolo a tela da terceira rede social seguida para espantar o tédio de fim de noite. As notícias em perfis de jornais logo me fazem desistir; amanhã cedo posso me informar. Ter uma noite minimamente tranquila e alienada tornou-se quase um autocuidado, mas me falta criatividade para pensar em outras formas de me distrair. Então volto para aquela que vem sendo minha atividade favorita dos últimos dias, feita quase religiosamente após às dez da noite. 

 

Abro a galeria do celular. Acredito piamente que dá para conhecer uns 80% do dono do celular por sua galeria. A minha se encontra meio deprimente, a cara de uma estudante de jornalismo, com prints de matérias de jornais e de slides da faculdade. De vez em quando há uma foto de gatinho fofo que me prende por alguns instantes. Mas não estou vagando sem rumo, sei o que estou procurando aqui. Um pouquinho da magia da vida antes da pausa. O que antes era apenas rotina, hoje é quase uma utopia distante. 

 

À medida que deslizo o dedo pela tela, volto alguns meses, volto para um ano e meio atrás. O cabelo era outro, o tom de pele e o jeito de vestir também. A última foto antes da pandemia foi tirada em um shopping, uma saída com amigos, dias antes de tudo fechar. Volto um pouco mais e há sorrisos no carro, na praia, na serra. Família reunida. Festas com amigos. Encontros pós provas de fim de semestre. 

 

Os vídeos são a melhor parte. Mostram de forma viva como era a minha felicidade na época. Há risadas, brincadeiras, amigos errando a letra no karaokê. Caminhos novos e enevoados, com minha empolgação de trilha sonora. Prova concreta de que essa vida não é mais minha. Faz parte de um eu que foi embora mas nunca disse adeus, que secretamente espero que volte quando tudo passar. Mas quando vai passar?

 

De repente ficamos presos em uma ficção ruim, uma infeliz existência em que o medo e as mentiras são nossos companheiros diários. Nesse período inicial, a galeria mostrava prints de chamadas de vídeos e informações importantes para repassar aos conhecidos. Mal sabíamos quanto tempo isso duraria. Logo a galeria começa a ficar com espaços cada vez maiores sem nada, apenas fotos ocasionais de gatinhos. É um vazio não apenas no aplicativo do celular, mas na minha memória também. O que fiz durante aqueles dias e meses? Não sei dizer, não há registros.

 

Já consegui ver alguns parentes e amigos após o início da pandemia, mas a distância ainda está ali, e reconheço que deve ser mantida. A angústia daqueles milésimos de segundos em que ponderamos se devemos nos abraçar ou não, deveria ser banida para sempre. O afeto só por palavras não é suficiente para preencher o vazio de meses isolados. Esse “novo normal”, como muitos insistem em chamar, não tem nada de normal. Me recuso a aceitar isso. E apesar de não saber quando a antiga realidade será nossa novamente, e se voltaremos a ela, continuo com esperança e planejando mil e uma formas de aproveitar mais intensamente a vida, até mesmo os pequenos encontros. Quero voltar a ficar feliz com a vida que está retratada na minha galeria. Quero voltar a reconhecê-la como minha.

 

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