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19/09/2023 às 20h21min - Atualizada em 19/09/2023 às 19h02min

Quando a normalização da produtividade tóxica se encontra com a autoexploração

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de indivíduos cansados e deprimidos vem crescendo gradativamente nos últimos anos

Ane Xavier - Edição por Mayane Humeniuk

“Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte.

Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo.”

– Antonio Candido

 

A capacidade de ser multitarefa é cada vez mais valorizada na contemporaneidade. Em todo lugar a produtividade é vangloriada: seja nas entrevistas de emprego, nos comerciais de televisão ou nas redes sociais. No entanto, na maioria das vezes, a cobrança exacerbada por eficiência gera o oposto: em vez de rendimento, encontra-se esgotamento. Como consequência, o número de indivíduos cansados, debilitados e deprimidos vem aumentando exponencialmente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é considerado o país com mais casos de ansiedade no mundo e o quinto mais depressivo. Além disso, de acordo com um estudo da International Stress Management Association (Isma), o nosso país ocupa o segundo lugar de diagnósticos de Burnout, também conhecida como Síndrome do Esgotamento Profissional, doença advinda do excesso de trabalho.

Com a constante exposição a discursos motivacionais de produtividade tóxica, que pregam que tudo é possível e basta apenas se esforçar para conseguir o que deseja, a busca por resultados se torna constante. E a cobrança, que deveria ser externa, passa a ser interna também. Torna-se então normal o sentimento de culpa por descansar, o ócio se torna entediante e a necessidade de estar fazendo alguma coisa se sobressai, porque, se não está se produzindo algo, o tempo está sendo perdido. E quando se percebe, a espiral de autoexploração já está formada. Não há mais repouso. Estabelecer limites deixa de ser uma forma de autocuidado e passa a ser uma demonstração de fraqueza.

O indivíduo adoecido pela rotina passa a sentir sintomas físicos de esgotamento. A fadiga, dificuldades de concentração, pressão alta, problemas gastrointestinais, dores musculares e alterações no batimento cardíaco estão na lista dos sintomas da exaustão extrema. O psicológico também fica adoecido. Nota-se em pessoas acometidas pela Síndrome de Burnout o excesso de negatividade, alterações repentinas de humor, sentimentos de incompetência, fracasso e insegurança, além do isolamento. 

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro “Sociedade do Cansaço”, fala que a doença do século XXI não é viral e nem bacteriológica, e sim neuronal. O desempenho passa a ser um imperativo, e o slogan you can do it coloca a produção como prioridade. Logo, se usa uma nova forma de coerção: a motivação. Discursos repletos de positividade, defendendo que nada é impossível, se tornam habituais. O resultado disso tudo é prejudicial, pois estabelece cada vez mais metas impossíveis de serem alcançadas e, logo em seguida, como consequência, o sentimento do indivíduo passa a ser de frustração por não ter conseguido atingir o impossível. A maior pressão de agora em diante passa a ser interior, e o tempo, que poderia ser usado de diversas maneiras como uma forma de autorrealização, passa a ser todo direcionado no cumprimento de tarefas. Esse sentimento pode até parecer inerente ao subconsciente, mas, na verdade, ele é construído por uma série de mensagens vangloriando a produtividade mostradas ao longo do dia, nos meios de comunicação. O autor destaca: “O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade.”   

A positividade tóxica é retratada principalmente nas redes sociais, nas quais a maioria dos influencers exibem uma vida aparentemente perfeita. Ao exibir rotinas produtivas, eficientes e cheias de compromisso para os seus seguidores, é comum o sentimento de inferioridade do público, proveniente da comparação de um recorte da realidade com a vida real. A afirmação de que ninguém consegue ser produtivo o tempo todo parece ter caído no esquecimento. E é cada vez mais difícil ser proveitoso de forma integral quando se estuda e/ou trabalha, quando se gasta muitos minutos no transporte público, quando se cuida da casa e, principalmente, quando se cuida dos filhos, trabalho este que é sempre integral.
 

Narrativas do cotidiano: pessoas reais, rotinas reais
 

A estudante de Edificações pela FATEC, Daniela Hokama, de 19 anos, conta que apesar de apenas estudar, a pressão por ser cada vez mais produtiva também a atinge. “Havia uma época em que eu me sentia muito, muito mal. Pensava 'ah, nossa, eu me sinto uma inútil, não consigo fazer nada, né?' E aí eu abria o TikTok, e vinham vídeos das pessoas que têm uma idade muito semelhante à minha, que fazem muitas coisas, saem de casa, estudam, vão para a academia, têm um dia muito produtivo... E eu ficava tipo, 'Poxa, eu não faço nada, eu não faço nada o dia inteiro’. Existia muita pressão.” Para ela, é ainda mais difícil ter o dia inteiro produtivo pelo tempo que gasta dentro do transporte público. “Se for contar só o caminho de ônibus, são quarenta minutos. Na ida é mais rápido. Então, são tipo dez minutos esperando o ônibus, mais quarenta minutos dentro do ônibus para chegar à faculdade. Então, aí, são cinquenta minutos. Agora, para voltar, é no horário de pico aqui em São Paulo. Então demora muito mais. São tipo, vinte a trinta minutos esperando o ônibus, mais esses cinquenta minutos dentro do ônibus para voltar para casa”, conclui.

 

Daniela Hokama mostra o seu ambiente de estudos

 

    Bruna Sousa tem 30 anos, é babá, estudante de Enfermagem e mãe de duas meninas de 12 e 6 anos. Para ela, é um desafio conciliar todas as demandas das diferentes áreas da sua vida. “É muita correria. Às vezes não dá tempo de fazer tudo, porque é muita coisa, e o tempo passa muito rápido. Eu acordo cedo, e vou trabalhar. Aí eu chego mais ou menos uma hora da tarde e já levo a minha filha caçula para a escola. Minha  filha mais velha estuda de manhã. Deixo a minha filha na escola e volto pra casa. Depois vou arrumar casa, lavar roupa, essas coisas. Às vezes também vou resolver alguma coisa no centro, por exemplo. Mais tarde busco minha filha na escola e quando dá umas 18 horas eu vou pra faculdade. Chego mais ou menos às 22 horas e vou dormir. E assim é minha rotina”, conta. 

    Mesmo com a ajuda da sua filha mais velha e do seu marido na rotina, Bruna relata que o cansaço é algo constante. “Cansaço e ansiedade é exatamente o que eu mais sinto. Cansaço todos os dias. E ansiedade quando algo não acontece do jeito que tem que acontecer. Aí eu acabo ficando muito ansiosa, preocupada”. Ela relata que busca maneiras naturais de curar a sua ansiedade, orando, por exemplo.

 

Bruna Sousa relata as dificuldades de conciliar toda a sua rotina

 


 

Aline Oliveira, de 32 anos, é mãe, sommelier e estudante de Gastronomia. Ela conta que, após a pandemia da Covid-19, a junção das demandas acumuladas, a vontade de voltar ao mercado de trabalho como antes e os seus dois filhos, de 4 e 5 anos de idade, ocasionou uma tumultuação em suas funções. O resultado do cansaço constante e o descanso escasso, foi uma crise de ansiedade intensa. “Eu não tinha horário. Era aquela coisa de acordar de manhã e a primeira coisa que eu fazia era olhar o celular. E aí a conta chegou, né? (...) Tive que frear as coisas. Tive que escolher quais demandas eu iria assumir”, relata. 

    Ao ser questionada sobre sua rotina, Aline descreve: “de manhã, minha rotina é voltada pra casa e pras crianças. Eu acordo, ajeito o café da manhã, vou cuidar das demandas de casa que a gente tem que fazer, por exemplo, tirar o lixo, colocar uma roupa pra lavar, vejo se as fardas das crianças estão limpas, se preciso providenciar o lanche da escola, tomar café da manhã, fazer o dever de casa com eles, dar banho, preparar o almoço… E a nossa meta é meio-dia estar todo mundo sentado, almoçando. Porque meio-dia e meia a van passa, e eles precisam ir pra escola”. 

O descanso só vem nos finais de semana. “Durante a semana não tem como descansar. Por exemplo, quando a demanda de trabalho aumenta, as crianças ficam sem fazer atividade da escola ou eu deixo de realizar alguma tarefa urgente da casa, como dobrar roupa, limpar a geladeira (...) isso é uma sobrecarga muito real. Eu preciso ser mãe além de trabalhar. O final de semana é o meu tempo com as crianças e o meu tempo pra mim. É o dia que eu vou cuidar da casa com mais intensidade, eu vou dar faxina, é o dia que eu vou ao salão, vou dormir até mais tarde, vou assistir um filme de tarde, vou dormir no sofá… Descansar mesmo, sabe? De colocar o celular no não perturbe, enfim. Mas eu ainda me sinto muito sobrecarregada.”

    Aline também enfatiza a pressão para continuar sendo produtiva o tempo todo. “Eu brinco que eu tenho que ser boa dona de casa, boa esposa, uma mãe calma, estar bonita e ainda ser simpática. Hoje eu me permito muito descansar, mas eu seria menos cansada se tivesse uma divisão de tarefas paternas também, sabe? Como fazer a tarefa das crianças, checar se tem lanche, se o uniforme está lavado, o que vai ser de janta… Eu sinto que isso é uma realidade da nossa geração de uma forma geral. E isso desanima. Hoje mesmo eu queria comer uma comidinha boa com vinho, mas tá tudo sujo e a casa bagunçada. Não queria que eu tivesse que fazer isso. É aquela coisa, ou eu faço ou é delivery. E conversando com amigas mães, é exatamente igual com elas.” 

 

Aline Oliveira, de 32 anos, é estudante de Gastronomia e sommelier.

 

 

A importância do autocuidado

 

Em conversa, o psicólogo Danilo Machado, de 32 anos, destaca a necessidade de estar atento aos sintomas de burnout. “Tem sinais que são detectados facilmente, como a falta de interesse no trabalho e em interagir com a equipe, por exemplo. A sensação de fracasso e a baixa autoestima começam a se tornar evidentes. (...) Há também a criatividade reduzida, pois a mente está cansada e cheia de pensamentos pessimistas. Se o indivíduo percebe estes sinais com frequência na dinâmica do trabalho, é hora de repensar a rotina, dar uma pausa e colocar em sua agenda o cuidado da sua saúde mental e física.” 

 

O psicólogo Danilo Machado salienta a importância do tempo livre para a saúde mental

 

O profissional também destaca o papel da influência das redes sociais na saúde mental de seus usuários e a importância do controle do tempo de uso das mesmas. “As mídias digitais estão cada vez mais inseridas na sociedade, influenciando em mudanças de comportamento e criando tendências. Em alguns aspectos isso é positivo, pois, como ficou claro na pandemia de Covid-19, as redes aproximaram as pessoas durante o isolamento social. (...) Entretanto, é preciso ter cautela, pois o tempo gasto em telas e o tipo de conteúdo consumido pelo usuário pode afetar de maneira significativa a saúde mental do mesmo. Existem uma série de pesquisas científicas feitas por especialistas na área da saúde mental que revelam que é preciso ter atenção ao uso das redes, pois elas interferem diretamente no quadro de depressão e ansiedade de quem as utiliza.” 

No entanto, as redes sociais não são as únicas “vilãs” da história e o cuidado com a saúde mental deve ser estendido a vários outros aspectos do cotidiano. “O tempo dedicado às telas tem forte impacto na rotina, no humor, no ciclo do sono, no comportamento alimentar e nos relacionamentos. Mas é importante ressaltar que o uso das tecnologias e redes sociais não é a única causa que desencadeia os transtornos mentais, afinal, as patologias são diagnosticadas como multicausais, ou seja, há um conjunto de fatores que fomentam os quadros clínicos”, completa.

Por fim, Danilo dá conselhos para as pessoas que querem fugir da positividade tóxica e estão tentando ser mais saudáveis. “A primeira coisa é buscar autoconhecimento, conhecer seus limites, anseios, características e habilidades, e isto só se consegue com a psicoterapia, pois, muitas vezes, as pessoas têm dificuldade de se autodefinir. A segunda coisa é buscar se reorganizar, e isso vale para vida e não apenas em questão de rotina. Definir prioridades é fundamental para ter um equilíbrio. A terceira coisa é: se dê valor e respeite seu tempo. Cada indivíduo é um ser único e singular, e é essencial ter isso em mente. A quarta coisa: tire um tempo de autocuidado mental e físico. E por último, tire um período de desintoxicação de redes sociais e informações que não trazem um retorno positivo e que não são funcionais. Busque conciliar um tempo de qualidade e produtividade, de autorrealização e valorização”. 


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