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23/09/2019 às 22h03min - Atualizada em 23/09/2019 às 22h03min

Bacurau: o longa que imergiu o Brasil

Com referências de Tarantino a Star Wars, o filme dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles hipnotizou o público nas salas de cinema

Brenda Bertoldo - Editado por Bárbara Miranda


Portal do Correio Braziliense.  FONTE : Victor Juca / Divulgação. 

O longa metragem Bacurau, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2019, estreou em agosto para todo o Brasil, e tem levado o público ao delírio dentro das salas de cinema continuamente. Os responsáveis por tamanha ousadia audiovisual, são os pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A direção e o roteiro não poderiam estar em mãos melhores, pela visão um tanto futurista, mas nem tanto, de ambos em outros trabalhos como no curta Recife Frio (2009), e pela indicação à Palma de Ouro com Aquarius (2016).

Alerta Spoiler!  

O enredo do filme se constrói em cima de Bacurau, uma cidade fictícia do Sertão brasileiro, onde vários acontecimentos suspeitos ocorrem. Ele se inicia com a chegada de Teresa (Bárbara Colen), neta de Carmelita (Lia de Itamaracá), que ao seguir caminho para o munícipio se depara com um caminhão tombado cheio de caixões, tal qual um presságio da morte. Ao chegar, lhe colocam um produto estranho na boca e se junta com a família e a população local no funeral de Carmelita, matriarca do lugar. No sepultamento, ela vê o caixão de sua avó transbordar de água. O suspense, então, toma o espectador para o universo do pássaro brabo.
 
No desenrolar dos acontecimentos, os quais parecem sempre abrir novos trajetos para a história, conhecemos outros personagens relevantes para a construção da trama, como Plinio (Wilson Rabelo), pai de Teresa, que se tornou uma espécie de liderança após a morte da mãe. Domingas, interpretada pela ilustre Sônia Braga, aparece no velório numa confusão de sentimentos à flor da pele por causa da perda, e Pacote/Acácio (Thomas Aquino) com seu ar misterioso e olhar penetrante, que levam o espectador aos primeiros questionamentos. Mais à frente são apresentados elementos da cultura nordestina, traçados fortemente no povo bacurense (ou gente) e na própria onipresença de Lia de Itamaracá. Desde o sotaque às belezas paisagísticas que refletiram na qualidade da fotografia do longa, demonstra a riqueza que o Nordeste brasileiro possui. Algo curioso no longa, é o desaparecimento da cidade do mapa e o simbolismo que há por trás disso, no sentido de pertencimento a um lugar que está prestes a ser ocupado, e que não haveria memória desse povo se ele não reagisse ,tornando a invisibilidade uma arma contra as falácias do político corrupto.
 
Entretanto, há um outro núcleo que chama atenção: o liderado pelo ícone do cinema mundial Udo Kier, que interpreta Michael, o estrategista dos ataques contra os bacurenses. Existe uma analogia muito peculiar na história do filme com relação ao colonialismo no Brasil, e está muito presente nas dinâmicas desse núcleo que representaria o colonizador perfeitamente. Numa cena entre os estrangeiros e os dois brasileiros que trabalhavam para eles, fica nítida essa noção de vassalagem de uma classe média brasileira que pensa fazer parte de um grupo dominador, mas na verdade, é só mais um de seus instrumentos de ataque à colônia. Além das afirmações racistas em forma de piada por parte dos gringos, é desenhada uma nova pirâmide social nessas interações, composta pelos estrangeiros na ponta, “João” (Antonio Saboia) e “Maria” (Karine Teles) como representantes do sudeste na faixa média, e o povo sertanejo na base.
 
Mas Bacurau demonstra muito bem o vigor dentro de seu povo, que passou por descabidas investidas do poder público para perda de direitos humanos básicos, como a saúde e alimentação, ao lhes fornecerem remédios e comidas vencidos. A educação, quando descarregam livros dentro da cidade como se fosse lixo. E a informação e comunicação, quando os estrangeiros cortam o sinal dos celulares. A cidade resiste aos ataques morais e estruturais. Neste sentido, a personificação dessa resistência é Lunga (Silvero Pereira), que mostra em si a consequência de um sistema que o fez ter fome e sede, de corpo e justiça, e o fez agir por meios tenebrosos, se tornando juntamente com Pacote, um anti-herói impagável. Numa ponte fantástica com a história do cangaço, as cabeças dos colonizadores são postas à praça pública, física e virtual. Quando a base sai do lugar o resto da pirâmide treme. Eis o recado dos diretores.
 
O filme nos carrega para uma distopia quase que orwelliana, pela forma crua como trata a violência, a criminalidade, as relações sexuais, a politicagem, a ausência de leis (simbolicamente demonstrada na carcaça do carro da polícia), naturalizados no contexto em que se encontram, numa espécie de faroeste de snipers e cangaceiros. Um outro ponto forte de Bacurau é a trilha sonora que surge de maneira sorrateira em cenas excepcionais, ou as tornam tais, de Gal Costa ao encantador trabalho dos irmãos Alves. Numa sequência que permeia entre diversos gêneros, há referências de Star Wars, com o slideshow na passagem das cenas, a Quentin Tarantino, na cena em que o casal de idosos nus e armados se aproximam da gringa baleada, relembrando Bastardos Inglórios. Só faltara cravar-lhe uma suástica na testa. Essa conexão com o que é da terra pernambucana e o que é de fora do país, demonstra bem que se pode consumir o importado demarcando os elementos do sertão sem perder a identidade.
 
Bacurau carrega o público para sua própria realidade,como se os psicotrópicos estivessem em suas bocas. A metáfora os sacode para problemas que já estão ocorrendo, sendo a solução se armar de museus e se proteger nos muros das escolas.Um outro fator é que não há um protagonista. Há um organismo composto por todos os personagens, de dentro e fora da tela, que pintaram essa obra-prima do cinema brasileiro ao romper com padrões estéticos já vigentes e referenciar sua própria história. Algo extremamente necessário para o momento ambíguo que vive o cinema nacional: do auge das grandes premiações aos descompassos governamentais, teve o poder de levar a tradição do cinema de rua ao crescente público novamente e de os fazer refletir mais a fundo naquilo que os cerca.George Orwell diz em 1984 :
 
      " Ao futuro ou ao passado ,a uma época em que o pensamento seja livre,em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam sós - a uma época em que a verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito [...] .(2004,p.29)
 
 Depois de entrar em Bacurau ninguém mais volta o mesmo.

O longa levou o Brasil a um novo patamar no audiovisual mundial. FONTE:DISTRIBUIÇÃO Brenda Bertoldo / Cine São Luiz - Recife.

 
 
REFERÊNCIAS 
 
OMELETE. BACURAUDisponível em : <https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/bacurau>. Acesso em 20 de setembro de 2019.
 
ADOROCINEMA.BACURAU , Disponível em :<http://www.adorocinema.com/filmes/filme-247818/criticas-adorocinema/ > . Acesso em 20 de setembro de 2019.
 
OBSERVATÓRIO DO CINEMA. CRÍTICA BACURAU, Disponível em :
CINEPOP .Bacurau - Obra-prima nacional no melhor estilo Tarantino , Disponível em :
ESTAÇÃO NERD.CRÍTICA BACURAU , Disponível em :<https://estacaonerd.com/critica-bacurau/> . Acesso em 21 de setembro de 2019.
 
JORNAL O GLOBO.Bacurau ganha prêmio do júri e faz história em Cannes , Disponível em :<https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/bacurau-ganha-premio-do-juri-faz-historia-em-cannes-23693090 > . Acesso em 19 de setembro de 2019.
 
CORREIO BRAZILIENSE, Premiado em Cannes, Bacurau estreia no circuito comercial , Disponível em :<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2019/08/29/interna_diversao_arte,779627/premiado-em-cannes-bacurau-estreia-no-circuito-comercial.shtml > . Acesso em 20 de setembro de 2019.
 
ORWELL,George .1984 .29 ed.Companhia Editora Nacional, São Paulo,2004.
 
ROTTEN TOMATOES.BACURAU , Disponível em :<https://www.rottentomatoes.com/m/bacurau > . Acesso em 21 de setembro de 2019.
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