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20/11/2020 às 11h33min - Atualizada em 20/11/2020 às 11h25min

Cabelo e identidade

Transição capilar é importante na afirmação da identidade de mulheres negras

Aila Beatriz da Silva Inete - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto: arquivo pessoal
A identidade é muito importante para nós, seres humanos. Saber quem somos e há que grupo pertencemos é relevante para a nossa construção. Historicamente, os cabelos são fundamentais para a nossa formação e autoestima. No artigo "Cabelo, Cabeleira, Cabeluda, Descabelada: a importância do cabelo na construção da identidade da raça negra", de Ana Lucia da Ressurreição Santos, Milena Barbosa Conceição e Dyane Brito, explica que, desde a antiguidade, os cabelos são “elementos fundamentais da personalidade humana, sustentáculo da beleza, do fascínio, da sedução e, às vezes, até mesmo do poder e da força”.

Atualmente, ainda guardam um grande “valor simbólico" como preservação de cultura e resistência. Além disso, é exposto que os cabelos “são um meio de expressão real e, sabendo-os ler, podem revelar até mesmo aquilo que às vezes queremos esconder, como a nossa idade, a etnia à qual pertencemos, o nosso credo político ou o nosso grau de instrução”.

A construção da identidade de pessoas com os cabelos encaracolados ou crespos no Brasil é muito dificil e está diretamente ligado à discriminação dos traços negros, pois sempre ouve um tentativa de apagar esses traços. Juliana Mendes, estudante de comunicação social, começou a alisar o cabelo bem novinha. Ela explica que começou com procedimentos mais leves - escova e chapinha - até chegar na progressiva. “Eu comecei a alisar o meu cabelo porque eu não gostava dele, não me sentia confortável com ele. E eu sabia que as pessoas também não gostavam. Então, eu sentia quase que uma necessidade [de alisar]”. No início, ela amava ter cabelo liso porque ela se sentia igual às outras meninas. Juliana estudou em escola particular e no ambiente as pessoas eram, em sua maioria, brancas. “Todas as minhas amiguinhas da escola tinham os cabelos lisos, então, eu me sentia a pessoa diferente. Eu via elas indo para a escola de cabelo solto e era o meu sonho ir com o cabelo solto”, lembra a estudante.  Quando alisou os cabelos, ela passou a se sentir parte daquele ambiente. Além disso, ela passou a se sentir mais bonita - já que o padrão de beleza era aquele.

Dhébora Dias, universitária de 21 anos, começou a fazer química no cabelo por volta dos 12 anos, mas por não ter como manter, deixou o cabelo voltar ao normal. Contudo, quando ele começou a crescer, ela passou a usá-lo preso. “Voltei a fazer química alguns anos depois, muito por conta da pressão da adolescência, eu não me sentia bonita com meu cabelo e isso me incomodava, não podia usar solto pois tinha muito volume e eu não sabia lidar, eu ficava muito triste por não poder sair com as minhas amigas ou mesmo ir para escola com um penteado ou com o cabelo solto”, relata a estudante.

Transição e representatividade

Dhébora fez a transição no ensino médio, quando teve um “boom” de representatividade. “Eu comecei a ver pessoas falando sobre cabelos crespos, tinham pessoas na internet falando sobre isso e ensinando, aprendi sobre fitagem, finalização, day after, big chop e sobre como cuidar do cabelo, coisas que eu nunca tive acesso e nem imaginava que existiam”, conta Dhébora. Ela lembra que muita gente aconselhava a não mudar o cabelo, mas ela queria saber como ele era de verdade. “Eu aprendi tanta coisa legal sobre o cabelo crespo, eu queria meu cabelo natural de volta para poder cuidar dele e aprendi que o volume era lindo, eu realmente queria que ficasse natural”.

Já Juliana Mendes teve que parar com alisamento porque o cabelo ficou muito danificado. “Eu não decidi fazer a transição, eu tive que fazer. Eu tive que fazer um tratamento de alguns meses para recuperar a força capilar. Nesse tempo, eu só fazia chapinha, e o meu cabelo foi voltando ao natural sem que estivesse me dando conta”, relata a estudante. Por volta dos 12 anos, a estudante lembra de ver a atriz Taís Araújo em uma novela: "Viver a vida". “Ela estava com o cabelo cacheado enorme, e eu falei: caramba, o meu cabelo deve ser parecido com o dela, porque eu não sabia como era o meu cabelo natural, mas eu fiquei me perguntando: o meu cabelo deve ser parecido com o dela, o cabelo dela é lindo, porque que eu ainda tô alisando?”, conta.

A escritora Bell Hooks, no artigo "Alisando o nosso cabelo", evidencia que vinculado com os “rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos, que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um significante da opressão e da exploração da ditadura branca”.

Dhébora Dias relata que, na família, nunca teve alguém que tivesse o cabelo parecido com o dela e quem tinha cabelo crespo fazia alisamento ou usava constantemente preso ou molhado. Para ela, foi importante ver na televisão a Taís Araújo e a Sheron Menezes. No Youtube, ver Ana Lídia Lopes, que passou pelo big chop, a encorajou a fazê-lo também. “Nunca foi sobre ter coragem ou sobre assumir o cabelo, foi sobre ter representatividade e poder, ver pessoas parecidas comigo e ver beleza nisso, foi sobre me ver bonita com o cabelo natural”, afirma. “Poder ver meu cabelo de verdade depois de tanto tempo, foi muito bom para mim, me ajudou a descobrir como eu era, ajudou na minha autoestima e foi aí que me vi como a mulher que sou”, declara Dhébora. Hoje, ela e até mesmo as pessoas que a conhecem não imaginam uma Dhébora sem o cabelão. “Eu uso black a mais ou menos 5 anos, e eu amo meu cabelo do jeito que ele é. Faz parte de quem eu sou”, afirma a estudante.

“Meu cabelo foi fundamental para que eu me entendesse enquanto uma pessoa negra, para que essa identidade viesse mais forte, porque eu sou uma pessoa negra de pele clara, os meus outros traços são o que reforçam a minha negritude, então, se eu for tirando tudo isso eu não vou me sentir uma pessoa negra”, explica Juliana Mendes. Ela ressalta, ainda, que o cabelo foi muito importante porque foi uma forma de identificação com outras mulheres negras. “Meu cabelo significa muito, é uma questão de autoestima, de olhar e saber que eu sou bonita com o meu cabelo natural, que eu não preciso mudar nada para que eu seja amada, respeitada, valorizada. eu acho que não é atoa que as pessoas usam Black Power (poder preto, em tradução livre), porque quando eu estou com o meu cabelo bem volumoso, eu me sinto muito dentro da minha identidade, dentro de mim, dentro do que é o meu povo e me sinto pertencente a uma comunidade. Meu cabelo significa empoderamento, no sentido mais pleno da palavra”, finaliza Juliana Mendes.

Historicamente, mulheres e homens pretos foram coagidos a odiarem seus corpos, traços e cabelos. Passar pela transição é muito mais do que voltar ao cabelo natural, é voltar às raízes. Às vezes, é descobrir a sua própria identidade e se conhecer de verdade.

Referências

HOOKS, Bell. Alisando o nosso cabelo. Portal Geledés. 10 de junho de 2014. Disponivel em: https://www.geledes.org.br/alisando-o-nosso-cabelo-por-bell-hooks/. 
Acesso em: 13 de novembro de 2020.

SANTOS, Ana Lucia da Ressurreição, CONCEIÇÃO, Milena Barbosa, BRITO, Dyane. Cabelo, Cabeleira, Cabeluda, Descabelada: A importância do cabelo na construção da identidade da raça negra. III EBE CULT. 2012. Disponivel em: http://www3.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/05/Cabelo-Cabeleira-Cabeluda-Descabelada-A-importancia-do-cabelo-na-construcao-da-identidade-da-raca-negra.pdf.Acesso em: 13 de novembro de 2020.

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