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23/07/2021 às 10h01min - Atualizada em 23/07/2021 às 08h33min

As sequelas do aborto e um desfecho regado à violência psicológica

As cicatrizes da alma se criam e ali permanecem, o aborto é traumático e o autojulgamento é incessante

Vitoria Fontes - Editado por Andrieli Torres
Foto: Reprodução/Claudia Wolff
“A conotação estigmatizando da ilegalidade do aborto coloca a mulher na condição de ré, provocando sentimento de culpa, muitas vezes irreversível, levando a uma autocondenação sem apelo.” – observa a psiquiatra e psicanalista, Gilda Paoliello.

Nós somos o terceiro país mais intolerante do mundo quando o assunto é a criminalização do aborto. Nossa população é maioria quando a problemática é referente a oposição nas mudanças legislativas e vamos além, somos defensores da ideia de que a maternidade deveria sofrer determinadas punições e para além disso vivenciar um cárcere.

O poder legislativo sanciona a prática do aborto em situações específicas, como: casos decorrentes de estupro, ameaça de morte à mãe ou em hipóteses que o feto se identifica com anencefalia, entretanto, tal regimento não consegue ser tão eficaz na prática referente à descaracterização juntamente com a ideia de que mulheres deixem de abortar.

500 mil mulheres anualmente são vistas como protagonistas de abortos clandestinos anualmente, mas na verdade são apenas vítimas de uma questão que nunca deveria ser de saúde pública. A classe baixa se submete a ingerir remédios que podem facilmente ser adquiridos via internet, porém se faz necessário desembolsar um alto valor; as clínicas ilegais chegam a cobrar entre R$ 5 mil à R$ 10 mil, tal aquisição está longe fazer parte da realidade da população menos favorecida.

Engana-se quem pensa que o aborto termina quando o feto é retirado, muito pelo contrário, é apenas o começo de uma jornada repleta de culpa, depressão e outros transtornos emocionais, as sequelas estão longe de serem apenas físicas.

 
As cicatrizes da alma se criam e ali permanecem, o aborto é traumático, o autojulgamento é incessante, o repúdio da sociedade juntamente com o Estado para com a materna é desumano e os flashbacks das vivências do ato cometido ora ou outra vem à tona. O Sistema de saúde não dispõe de preparo algum e é deficiente quanto ao acolhimento que deveria ser oferecido no momento do atendimento, pelo contrário, muitas vezes as pacientes se sujeitam a condições deploráveis e desumanas.

Nenhuma mulher quer abortar, sabe por quê? Porque a saúde pública irá culpá-la, as autoridades institucionais irão culpá-la, a sociedade irá culpá-la. Requer desespero, abandono e acima de tudo coragem para dar esse primeiro passo.
O Estado falha todos os anos com essas mulheres.


“Fiquei emocionalmente abalada, me julguei muito. Alguns anos se passaram e até hoje em alguns momentos me questiono. Ali, naquele momento eu não era ninguém.  – Relata Aparecida, 57 anos.

Vinda de uma família muito humilde, Francisca, cuja identidade não será revelada, aos seus 24 anos vivenciou a experiência abortiva e compartilha marcas e reflexões que carrega até hoje, 33 anos depois. 

R.: Uma gravidez necessita de toda uma estrutura emocional tanto da materna quanto daqueles que são próximos a ela. Uma interrupção ocorre por diversos motivos e é de extrema importância que também tenha um suporte médico e psíquico. O que passou pela sua cabeça quando se deu conta da possibilidade da realizar a interrupção da gravidez? Você tinha conhecimento do procedimento e seus riscos relacionados a própria saúde?
 
E.: Tinha sim conhecimento dos riscos que estava propensa a correr, até porque na época trabalhava em um hospital, era atendente de enfermagem, então sabia de todos os riscos. No momento o que passou pela minha cabeça foi algo como: “estou aqui, que seja feito preciso me livrar”, mas quando me deitei naquela maca não consegui pensar em mais nada, como se tivesse acontecido uma espécie de pane geral no meu subconsciente, naquela hora minha mente ficou vazia, oca, sem reação, simplesmente fiquei ali vendo e sentindo o procedimento acontecer.

R.: Sabemos que o sistema de saúde não está preparado para oferecer acolhimento, assim, havendo uma enorme discriminação na assistência ao aborto provocado. Como foi a sua experiência?

E.: Então, não me organizei para fazer esse aborto, eu não me programei para fazer, simplesmente fui dormir depois de um ocorrido muito triste e na manhã seguinte acordei com isso tudo arranjado pela minha mãe, né? Ela me colocou num carro juntamente com uma amiga e fomos. Eu não sabia para onde eu estava indo, mas sabia o que aconteceria. Naquele momento estava me sentindo, assim, tão abandonada, tão ninguém que eu simplesmente fui, costumo dizer que fui conduzida calada. Me lembro do silencio ensurdecedor durante todo o trajeto, o local tinha uma fachada até que bonita, sabe? Era uma era clínica, não sei na época quanto a minha mãe pagou, mas sei que foi um dinheiro alto. Chegando lá, me deparei com uma mulher que me tratou como fosse nada. Ao mesmo tempo que ela realizava os trâmites, o questionário que você responde antes, ela me tratava com indiferença, frieza. Ali, naquele momento eu não era ninguém.

R.: Acredita que se houvesse a criminalização do mesmo em situações mais abrangentes o procedimento seria menos traumático uma vez que a ilegalidade traz à tona uma visão social que ficará entrelaçada à materna e sua escolha?

E.: Acredito que se a prática fosse legal, descriminalizada em um sentido geral tanto para pobre quanto para o rico, se todos tivessem direito a isso, talvez a mulher se sentisse mais acolhida porque verdade a mulher acaba indo à procura das clínicas clandestinas na hora do desespero, são conduzidas ou elas mesmas procuram por conta da dificuldade financeira, afinal, as mulheres que possuem uma situação financeira boa optam por outros caminhos, caminhos menos assombrosos. A descriminalização do aborto pode trazer queda no índice de mortalidade por consequência da clandestinidade já que os dados referentes a complicações pós-aborto são gigantes.

R.:  Podemos ver que a população de classe alta possui recursos e privilégios suficientes para encararem este cenário, uma vez que o aborto clandestino realizado em clínicas de alto padrão se comparado com àquelas que acontecem em ambientes e com ferramentas que mais se assemelham à um filme de terror, trazem medo. Qual o sentimento predominante ao se ver entre a cruz e a espada, tendo que ter a consciência da possibilidade de um desfecho fatal?

E.: A partir do momento que você tem uma condição de via boa, a situação é diferente, vai até a clínica, faz o procedimento e sai dali tendo a certeza de que terá um suporte. Comigo foi um cenário de horror. A casa tinha uma estética muito bonita, entretanto, ao adentrar a visão mudou, passou a ser um frio, acredito que o ambiente por si só seja sombrio por conta das coisas terríveis que acontecem ali. Fica ali realmente entre a cruz e a espada, você precisa ir e está colocando em risco a sua vida, tirando a vida de alguém e nesse momento de desespero você não consegue pensar em nada, você só acompanha e ouve o barulho das ferramentas. Eu não sei como que é uma clínica de luxo, alto padrão, mas essa em que fui contava com pessoas uniformizadas, mas lá dentro o ambiente era assustador, sabe? As macas, os baldes de inox, era tudo muito macabro.

R.: O Brasil é extremamente deficiente quando o assunto é educação sexual, isso acaba nos levando a deficiências em outros âmbitos da saúde especificamente da mulher. Nos casos de abortos clandestinos, infelizmente, é natural que a materna tenha que lidar com sequelas psicológicas, como:  depressão, crise do pânico. É de responsabilidade do Estado oferecer tais cuidados. Como alguém que hoje trabalha na área da saúde, o que acha que o Estado juntamente com o Sistema de saúde poderia lidar com essa problemática que deixou de ser uma questão social, assim, tornando-se referente à saúde pública?

E.: Realmente o Brasil é deficiente no âmbito da saúde e realmente uma pessoa que sai de uma de uma mesa de aborto, principalmente de uma de uma clínica clandestina, sai completamente perturbada e precisando de apoio, apoio psicológico. O procedimento desencadeia angústia, depressão e tantas outras coisas. A saúde é deficiente principalmente na parte neurológica. São filas e listas enormes de espera para você conseguir um acompanhamento psicológico e enquanto não acontece você vai levando a vida e sobrepondo situações uma em cima da outra e deixando esse machucado lá como quem não quer mexer, não quer falar porque sabe que vai doer, dilacerar. Só que isso ao longo da vida te acarreta problemas sérios e você continua sem respaldo, sem ajuda porque o nosso país, a saúde do nosso país ela é defasada. Por mais que o SUS esteja aí, as filas de pessoas com problemas precisando de psiquiatras e psicólogos é muito grande. Então, ao desenrolar da vida você acaba carregando um fardo nas costas, se fazendo de dura, forte e lá na frente isso te arrebenta de uma forma horrenda.
O Brasil deveria ter uma atenção mais voltada para esse lado, para que as pessoas tivessem mais acesso aos tratamentos psicológicos porque com certeza, digo por experiencia própria, a pessoa que passa por um aborto, a pessoa que pratica um aborto, carrega para o resto da sua vida algo não resolvido na vida dela. Nos dias de hoje você não tem como pagar um psicólogo, então, vai para uma clínica clandestina e passa por mão de pessoas muitas vezes que estão ali simplesmente para fazer aquilo e só, sem a mínima higiene, sem a mínima humanidade. Você levanta da maca como se você tivesse sido mutilado e não mutilada só fisicamente, mutilada também emocionalmente. Então, acho que o Brasil deveria unir forças e tratar melhor dessa parte psicológica, ter um olhar voltado para essas pessoas.

R.: Por fim, o que a Francisca de hoje falaria para a Francisca de anos atrás quando precisou encarar uma realidade tão dura e desigual?

E.: Hm, é uma questão muito difícil de se responder. Depois de viver tudo o que vivi, afinal, foi um ato que me acompanha até hoje, engravidei, tive outros filhos, mas a sensação é de que não está completa, essa sensação faz parte da minha vida. A Francisca de hoje diria que “não”, existem outras formas, outros meios, só que é fácil falar isso hoje depois de viver a situação e aos trancos de barrancos ter chegado até aqui né? É fácil falar isso hoje, mas eu uso isso, eu uso toda essa história, toda essa coisa que me machucou ao longo da minha vida para ajudar as pessoas. Então, por exemplo e por incrível que pareça já vieram várias pessoas até mim por ser da área da saúde querendo indicação de uma de uma clínica querendo saber se a Francisca não sabe de alguém e a minha resposta é que existe outro caminho e não porque seja contra a prática, mas sim porque o país em que vivemos não está preparado para lidar com o pós-aborto na vida da mulher. O Estado se que lhe dá informações, se quer saber tratar do assunto com delicadeza. Eu sei o que o aborto acarreta para a mente durante o resto da vida dela. Então, eu luto porque uma parte de você vai te cobrar para o resto da vida. Se você for por este caminho, por conta de toda a deficiência da sociedade em relação há tudo, você vai se arrepender, culpar e se tornar uma pessoa muitas vezes incompleta.
 
O Estado esquece que a clandestinidade é responsável por ocupar um ranking fatal, o Estado esquece de olhar para a questão social; o Estado dita uma lei, porém, deixa brechas e dentre essas, chegamos a um índice materno fatal e desumano. O aborto tira a vida de todos os envolvidos, inclusive daquele que fica e carrega consigo as marcas que jamais serão apagadas.
 

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