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04/02/2022 às 13h31min - Atualizada em 04/02/2022 às 13h09min

1922: o começo de uma revolução

Entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, a cidade de São Paulo esteve imersa em um caldeirão cultural que mudaria os rumos da produção literária brasileira

María Thereza Chaves - Editado por Larissa Bispo
Crédito/Reprodução: Google
O ano era 1917. A artista plástica Anita Malfatti – influenciada pelo Expressionismo europeu – expõe algumas de suas obras em São Paulo, influenciada pelo também pintor Di Cavalcanti. Suas obras fogem completamente do comum: a artista utilizava cores incomuns, traços grossos e pouca semelhança com a realidade.

As inovações de Anita geraram revolta na crítica, sobretudo em Monteiro Lobato, que escrevia para O Estado de São Paulo. Em seu artigo “Paranoia ou Mistificação”, Lobato critica ferozmente a nova forma de fazer arte. Esse foi o estopim para que outros artistas se reunissem para inaugurar uma nova forma de fazer arte.

Foi assim que em 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, foi organizada uma mostra para apresentar o novo movimento que mudaria o fazer artístico brasileiro, sobretudo o fazer literário. “Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional”, essas foram as palavras do escritor Mário de Andrade para definir o que o Modernismo representaria: uma negação dos costumes tradicionais e maior valorização do nacionalismo.

O Modernismo esteve presente em todas as formas de fazer arte, mas aqui focaremos na literatura. No Brasil, o movimento ficou marcado especialmente por promover uma arte genuinamente brasileira, fugindo dos moldes criados na Europa e alimentados pelas elites. Foi marcado, ainda, pela nacionalidade, ironia e proximidade do cotidiano. Para alguns – sobretudo as classes mais altas –, tudo aquilo era um verdadeiro escândalo, uma aberração.

Em seu poema “Ode ao burguês”, Mário de Andrade define todo seu desprezo pelas classes dominantes. Assim como outros escritores de sua geração, sua missão é subverter a ordem vigente.
 
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
 
Da Primeira Geração do Modernismo podemos destacar, no âmbito literário, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Mário foi um dos precursores da 1° fase do Modernismo com sua obra "Pauliceia Desvairada". Oswald foi o responsável pela escrita do "Manifesto Pau-Brasil" e do "Manifesto Antropófago". Quanto a Manuel Bandeira, seu poema "Os Sapos" foi recitado durante a Semana de Arte Moderna e funciona como uma sátira ao movimento parnasiano.
 
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...

 
Mas, afinal, quais foram os desdobramentos da Semana de Arte Moderna e da 1° fase do Modernismo? É inegável que, depois de todos os eventos de 1922, a literatura brasileira tomaria outros rumos. Na 2° fase do movimento, que se estende de 1930 a 1945, houve a consolidação dos ideais de 1922. A produção poética teve início em 1930 com a publicação de "Alguma Poesia", de Carlos Drummond de Andrade. Na prosa, José Américo de Almeida apresentou ao público "A Bagaceira".

A segunda fase surgiu em um contexto conturbado para todo o mundo. Alguns países enfrentavam uma situação difícil após a crise de 1929. Mesmo o Brasil foi impactado. Nesse contexto surgiu uma literatura mais ligada ao regionalismo e nacionalismo, com foco em situações cotidianas e linguagem menos formal, semelhante ao que havia sido proposto na primeira fase. Os principais autores desse período foram Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Jose Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Mario Quintana e Vinícius de Moraes.

Houve, ainda, uma terceira fase que, de certa forma, contestava o radicalismo da primeira geração. Nesse momento, o Brasil vive uma certa estabilidade política. Adota-se uma linguagem mais objetiva, valorização da métrica e da rima e academicismo. São conhecidos desse período João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Lygia Fagundes Telles.

O que se pode concluir de tudo isso? Talvez o Modernismo tenha sido a corrente literária que mais tenha feito jus à cultura brasileira. Com sua antropofagia, digerindo o que recebia de fora e devolvendo uma arte genuinamente nacional, soube oferecer a um povo desacostumado de si mesmo sua própria essência. Talvez nada disso tenha acontecido sem a Semana de 1922, prestes a completar cem anos. Aquele estardalhaço no Teatro de São Paulo foi responsável por inaugurar uma nova forma de fazer literatura.

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