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25/02/2022 às 21h37min - Atualizada em 25/02/2022 às 21h35min

Desaparecimento das línguas no Brasil: uma luta pelas identidades culturais

Ainda que o Brasil seja um país de grande diversidade cultural, o risco de extinção de línguas indígenas gera alerta para a preservação

Maria Eduarda Carvalho - editado por Giovana Rodrigues
Povos Guarani-Kaiowá se preparando para o Kotyhu, conhecido como ritual de danças e cantos. Fonte: Filme ‘Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio’, 2016

O Dia da Língua Materna é celebrado em 21 de fevereiro, conforme decretado em 1999, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A iniciativa visa garantir a diversidade linguística no mundo, além de uma educação mais inclusiva. Entretanto, segundo a mesma entidade, 190 línguas indígenas estão catalogadas como em risco de extinção no Brasil, impactando na preservação de sociedades multiculturais.

Em um contexto mundial, a UNESCO revela que 43% das 6.000 línguas existentes estão em risco de desaparecimento. Em entrevista, Adauto Soares, Coordenador do setor de Comunicação e Informação da UNESCO no Brasil, pontua que o trabalho desse setor diz respeito à inclusão de identidades culturais, a partir da garantia do multilinguismo. Adauto pontua que é fundamental que espaços digitais abranjam o maior número de línguas existentes, tendo em vista a grande adesão do ciberespaço.

Diante disso, surgiu a iniciativa do Atlas das Línguas Mundiais em Perigo, com objetivo de mapear o risco de desaparecimento das línguas, enquadrando-as como “vulnerável”, “definitivamente em perigo”, “severamente em perigo”,  “perigo crítico” ou “extinta”. Sobre os fatores que classificam o grau de ameaça de determinada língua, Adauto explica quais são eles:

“O número absoluto de falantes, a transmissão intergeracional do idioma, a atitude dos membros da comunidade para/com sua própria língua, mudanças e domínios de uso da linguagem, atitudes institucionais e políticas, inclusive oficiais, sobre status e uso da língua, tipo e qualidade da documentação da língua, resposta aos novos domínios da língua e mídia, disponibilidade de materiais sobre a língua para educação e alfabetização e a proporção de falantes dentro da população total”.

Atlas das Línguas Mundiais em Perigo. Fonte: UNESCO, 2010.
 

 

Problemas constitucionais frente à luta indígena
O desaparecimento das línguas no Brasil é reflexo do processo de colonização, iniciado no século XVI. As lutas coercitivas para tomada do território, que aconteceram ao longo dos anos, mas que ainda se fazem presentes, estão relacionadas a epistemicídio, genocídio e glotocídio, que refere-se ao assassinato das línguas, visto que esses processos provocam desigualdades sociais e culturais a longo prazo. 

Numa tentativa de garantia dos direitos e interesses dos povos indígenas, a Constituição Federal de 1988, no artigo 231, declara que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

Ainda sim, por ser uma conquista relativamente recente, ações que infringem esse direito, como a invasão das terras indígenas ou a falta de distribuição igualitária dessas terras, a exemplo, colocam em risco a preservação dessas vidas, mas também tudo que está associado à elas, como organizações sociais, costumes, formas estéticas e a preservação das línguas.

Outro problema enfrentado pelos povos indígenas é a passagem dos idiomas para as próximas gerações. A falta de garantia dos direitos previstos constitucionalmente colocam em risco os idiomas, visto que são de predominância oral, e todo o conhecimento construído culturalmente.

Eliseu Lopes afixa 5.000 cruzes na Esplanada dos Ministérios. Fonte: Wilson Dias, EBC, 2012.
 

A necessidade de preservar o patrimônio cultural brasileiro
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) prevêem uma educação de qualidade e mais inclusiva para as pessoas. Assim, ao enquadrar os idiomas como patrimônios culturais, a organização gera um alerta para a necessidade de preservação dos povos indígenas, de forma a proteger as identidades, os meios de se comunicarem e de interagirem socialmente.

Diante disso, o acesso a conhecimentos mais profundos acerca da luta dos povos indígenas contribui para evitar formas de preconceito, imagens de controle e fabulações construídas. É o que afirma Luciana de Oliveira, professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela cita que a luta pela manutenção dos idiomas, e também das vidas indígenas, deve ser uma luta de todo cidadão, pontuando como soluções:

"A gente precisa de muita escuta, precisa compreender muito melhor a História, precisa de ter espaços de elaboração da nossa memória. [...] Repensar essa presença indígena dentro das nossas próprias famílias. [...] Precisa de uma maior incidência nos campos de visibilidade hegemônicos: de jornalistas, publicitários, de relações públicas que saibam mais das lutas indígenas, das histórias indígenas".

Assim, para a preservação das sociedades multiculturais, é essencial a garantia do acesso às terras, à educação de qualidade e à ferramentas de inclusão e incentivo ao exercício da cidadania. Tudo isso buscando a manutenção de espaços  culturais, mas também de campos que fomentem o relacionamento com toda a geração ancestral.

A luta do povo Guarani-Kaiowá contra a extinção

“Meu povo, que é o Guarani-Kaiowá, tem uma luta muito difícil no último tempo. Ganhou força mesmo depois de 1988, pela força da Constituição. [Ela]  permitiu que o povo tivesse mais reconhecimento da luta, [...] das reivindicações, e dos direitos para lutar, ser mais ouvido, apresentar denúncia”

Esse é um relato feito por Tonico Benite, líder indígena Guarani-Kaiowá e antropólogo, que traz mais detalhes, em entrevista, sobre a resistência indígena e a preservação da identidade cultural ao longo dos anos.

 

Os relatos presentes no filme denunciam a ocupação das terras indígenas para plantio de soja. Fonte: Filme ‘Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio’, 2016

 

O povo Guarani-Kaiowá, segunda maior população indígena no Brasil, possui seus territórios na região do Mato Grosso do Sul. Num contexto histórico, a luta pela visibilidade ganha força quando, em 1850, o governo considerou as terras como devolutas e não pertencentes a ninguém, ainda que houvesse a presença do povo Guarani-Kaiowá.

Além disso, a existências dos ciclos extrativistas de exploração da erva mate e da agropecuária para exportação, que marcaram a região durante o século XX, contribuíram para invasões territoriais, destruição da biodiversidade, além do apagamento das tradições. 

Como reflexo da luta  histórica por visibilidade, atualmente possuem mais de 50.000 falantes do Guarani, como pontua Tonico. Um dos problemas iniciais enfrentados era que as gerações mais jovens possuíam resistência ao se comunicar em Guarani, porque viam a língua como “inferior”, uma vez que as escolas permitiam apenas a comunicação em Português.

Diante das lutas para preservação da língua, como também da existência, atualmente as reivindicações foram atendidas, para manutenção de tradições: “A escola passou a atender essa demanda, porque a luta era que a língua Guarani fizesse parte do currículo da escola. [...] Isso foi atendido muito tempo depois e hoje temos como resultado o curso de licenciatura indígena intercultural bilíngue. [...] Tem, também, o curso de formação de professores Guarani-Kaiowá bilíngue, para atuar em séries iniciais, nas escolas”, comenta Tonico.

 

A Década Internacional das Línguas Indígenas

Como forma de integrar o multilinguismo e de garantir o direito de preservação das culturas às pessoas, a Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) foi decretada pela UNESCO em 2019. Além disso, a proposta objetiva alertar sobre as situações de extinção das línguas indígenas, trazendo soluções para preservação, revitalização e promoção das línguas por todo o mundo.

A Década Internacional das Línguas Indígenas foi desenvolvida a partir dos seguintes pilares, como afirma Adauto Soares: “documentação, cujo objetivo é ter base de dados sobre as línguas indígenas, [...] promover o conhecimento. [...] Temos a parte de revitalização, que é um trabalho mais de educação, [...] aumentar o número de falantes numa determinada comunidade. E a preservação é fazer com que a língua continue nos locais em que [ela] é falada. [...] Promover o desenvolvimento de conteúdos naquela língua ou preservar o que já existe”.



Referências:
 

ALMEIDA, Tamíris. 21 de fevereiro é o Dia Internacional da Língua materna. Futura, 2018. Disponível em: https://www.futura.org.br/21-de-fevereiro-e-o-dia-internacional-da-lingua-materna/. Acesso em: 03/02/2022

 

AVA YVY VERA - A Terra do Povo do Raio (Genito Gomes, Valmir Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, 2016, cor, 51’). Disponível em: https://embaubaplay.com/catalogo/ava-yvy-vera-terra-do-povo-do-raio/

 

DIA Internacional da Língua Materna promove inclusão por meio do multilinguismo. ONU News, 2021. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/02/1742102. Acesso em: 05/02/2022

 

EDUCAÇÃO em comunidades indígenas do Brasil é baseada no idioma nativo. ONU News, 2019. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/02/1660851. Acesso em: 05/02/2022

 

LÍNGUAS da América Latina em risco de desaparecerem. Euronews, 2019. Disponível em: https://pt.euronews.com/2019/07/29/linguas-da-america-latina-em-risco-de-desaparecerem. Acesso em: 04/02/2022

 

OLIVEIRA, Luciana. Cosmopraxis comunicacional dos povos indígenas Kaiowá e Guarani: resistência e luta por visibilidade. REVISTA LATINOAMERICANA DE CIENCIAS DE LA COMUNICACIÓN, v. 19, p. 46-58, 2020.

 

O que faz o Brasil ter 190 línguas em perigo de extinção. G1, 2018. Disponível em: 

https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/o-que-faz-o-brasil-ter-190-linguas-em-perigo-de-extincao.ghtml. Acesso em: 05/02/2022

 

SEGUNDO a Unesco, quase metade dos idiomas irá desaparecer. Veja, 2017. Disponível em: https://veja.abril.com.br/educacao/segundo-a-unesco-quase-metade-dos-idiomas-ira-desaparecer/. Acesso em: 04/02/2022

 

ZANON, Sibélia. Extinção de línguas indígenas pode matar saberes sobre plantas medicinais. Uol, 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/noticias-da-floresta/2021/09/16/extincao-de-linguas-indigenas-deve-levar-saberes-sobre-plantas-medicinais.htm. Acesso em: 05/02/2022


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