Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
16/10/2020 às 12h18min - Atualizada em 16/10/2020 às 11h07min

Boêmios e sonhadores: a arte dos perfis de Joseph Mitchell

Isabel Dourado - Editado por Bruna Araújo

Era década de 1930 quando o repórter Joseph Mitchell aceitou trabalhar na revista The New Yorker. Fundada em 1925 por Harold Ross a revista ficou conhecida pela alta qualidade do conteúdo jornalístico. Diferente dos outros veículos, a revista tinha a tradição de não estipular um prazo para a entrega das matérias. O jornalista desfrutava da liberdade de entregar quando julgasse estar pronta.

Quando Joseph Mitchell recebeu a oferta ele impôs apenas uma condição antes de aceitar: receber um salário regularmente ao invés de receber por produção. Foi também a partir da mesma década que os jornais e revistas começaram a apostar na ideia de retratar figuras humanas jornalisticamente e literariamente. Escrever um perfil exige do repórter a capacidade de captar e lançar luzes sobre o comportamento, os valores, os pensamentos, e os episódios que apontem a essência da pessoa que está sendo perfilada. As ações do personagem devem ser compreendidas num contexto maior do que de uma simples notícia.

Ao invés de fazer perfis de pessoas famosas da cidade de Nova York, o jornalista descrevia as pessoas que não eram “vistas” na megacidade. Pessoas anônimas, boêmios, vagabundos e sonhadores estavam presentes na escrita de Mitchell. Se o escritor Charles Dickens apresentava o espírito de Londres através dos personagens de seus livros, Mitchell traduzia a identidade de Nova York captando as particularidades das pessoas que seriam perfiladas. Ademais, ele conseguia captar as nuances dos personagens.

Mitchell escreveu sobre o boêmio Joe Gould. O primeiro, "O professor gaivota", escrito em 1942. Vinte e dois anos depois Mitchell escreve o segundo perfil, "O segredo de Joe Gould" publicado em 1964. Gould é “um homenzinho alegre e macilento” conhecido nos bares e tabernas do Greenwich Village. Gabava-se de ser um dos últimos boêmios. Há 26 anos, Gould dizia estar na missão de escrever o livro “Uma história oral da nossa época”. O manuscrito contava histórias de pessoas que ele conhecia na ruas da cidade de Nova York e continha longas transcrições de conversas banais.

Joseph Mitchell produziu uma história do homem comum, desconhecido. A arte dos perfis de Mitchell estavam concentrados na capacidade de observar de forma cuidadosa e em saber ouvir as pessoas. Diferente de outros jornalistas ele não fazia perguntas, apenas escutava com atenção e aproveitava as partes consideradas interessantes. Curiosamente assim como Gould, Mitchell queria “escutar o mundo”. 

Além do perfil de Joe Gould, Mitchell escreveu sobre o bar irlandês mais antigo de Nova York. As particularidades do Bar McSorley, que o tornavam tão frequentado pelos clientes, foram descritos no texto. Os fregueses eram na maioria irlandeses que esvaziavam as canecas de cerveja. Inaugurado em 1854, o bar teve ao longo dos seus 86 anos de funcionamento, quatro proprietários. Mitchell traça de forma envolvente o modo que o famoso bar funcionou. 

O gênero perfil trouxe uma nova cara ao jornalismo. O jornalista faz um esforço para trazer o personagem por inteiro para a matéria e proporcionar ao leitor uma visão ampla e detalhada a respeito do perfilado. A escuta é um dos elementos essenciais na construção do perfil na qual o jornalista dispõe de duas ferramentas: olhos e ouvidos atentos. Quando o jornalista Mitchell escreveu o perfil de Gould, ele não fez por um acontecimento específico, mas porque considerava que o perfil em si, seria suficiente para atrair a atenção dos leitores. Joseph Mitchell especializou-se na arte de ouvir, enxergar pessoas consideradas anônimas. Ao contar histórias de pessoas comuns, o jornalista da The New Yorker conseguiu passar uma mensagem interessante: a cidade é bem mais que o centro.


No Brasil, as revistas Realidade e O Cruzeiro adotaram o gênero jornalístico perfil. Lançada pela editora Abril a revista Realidade surge em 1966. A redação ficava em São Paulo. Teve 120 edições com um número variável de páginas, as menores 108 páginas e a maior 328 páginas. Na carta ao leitor a revista se apresenta como o veículo de homens e mulheres inteligentes que desejam saber de tudo, buscar conhecimento. Usava recursos do jornalismo literário e, oferecia ao público reportagens densas e detalhadas. A periodicidade mensal da revista permitia matérias bem elaboradas. Sofreu influências da revista alemã Twen. O gênero perfil teve grande relevância nos anos de 1966 à 1968. Entre os perfilados aparecem nomes de grande destaque: Oscar Niemeyer, Pelé, Guimarães Rosa. Na edição inaugural a revista Realidade publicou o perfil do escritor Jorge Amado o apresentou e traçou as características das suas obras. Um capítulo do livro Dona Flor e seus dois maridos foi disponibilizado na íntegra para os leitores.


Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »