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20/03/2021 às 01h34min - Atualizada em 20/03/2021 às 00h59min

"O naufrágio é geral, mas o afogamento é seletivo", diz Preto Zezé sobre a situação das favelas na pandemia

Em entrevista, o presidente global da Central Única das Favelas aponta a vulnerabilidade da população periférica brasileira em relação à Covid-19

Letícia Feitosa - Editado por Ana Paula Cardoso
Foto: Divulgação

Desde o início da pandemia da Covid-19 no Brasil, em março de 2020, a população negra se mostrou desproporcionalmente vulnerável ao novo coronavírus. Em novembro do ano passado, uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) informou que, no país, os pretos, pardos e indígenas têm 39% a mais de chance de morrer da doença do que os brancos. Essa situação tende a piorar, principalmente nas regiões periféricas, onde a maioria é negra e pobre.

 

Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou, em  dezembro de 2020, que as pessoas pretas ou pardas (56,1%) continuam sendo as que mais apresentam sintomas conjugados (perda de cheiro e/ou sabor; febre, tosse e dificuldade de respirar; febre, tosse e dor no peito) e que precisaram ficar internadas. Com essa realidade, o Instituto Pólis recomendou, em fevereiro de 2021, que as periferias fossem priorizadas nos planos de vacinação contra a Covid-19.

 

As favelas brasileiras, portanto, são áreas que indicam sobremortalidade. Isso quer dizer que são regiões com um número de mortes maior do que o esperado, com base na distribuição etária local em relação ao perfil demográfico geral do município. Nessas regiões, moram grande parte dos prestadores de serviços considerados essenciais, de acordo com Preto Zezé, presidente global da Central Única das Favelas (Cufa). Para ele, a situação é preocupante, pois são "pessoas que estão arriscando as suas vidas e não estão tendo direito ao isolamento nem estão na lista dos prioritários para a vacina".

 

A Cufa, que existe há 20 anos, é reconhecida nacional e internacionalmente nos âmbitos político, social, esportivo e cultural. No período pandêmico, com o intuito de oferecer auxílio às periferias, a organização criou projetos de suporte, como o "Mães da Favela", que arrecada alimentos, itens de higiene, dinheiro, entre outros, para mulheres de todo o Brasil.  

 


Preto Zezé, criado nas Quadras, periferia de Fortaleza, é empreendedor, produtor artístico e musical, escritor e ativista brasileiro. Ele nos contou um pouco sobre essa atual realidade e como a Cufa atua durante essa crise:

 

Letícia Feitosa: A Cufa criou uma plataforma de conectividade muito grande nas favelas do Brasil. Como você se envolveu com a Central Única das Favelas?

Preto Zezé: Eu lavava carro na rua, aí eu conheci o hip hop. Depois, isso não foi o bastante, eu queria algo mais para articular as agendas das favelas e a diversidade que a favela é, até porque a favela é maior que o hip hop. Aí eu conheci Celso Athayde [empresário, produtor de eventos e ativista social brasileiro], e ele acabou me recrutando para a Cufa. Depois disso, começou a minha história nessa organização. Em 2012, eu me tornei o presidente nacional, depois do MV Bill [rapper, ator, escritor e ativista brasileiro]. Em 2015, me tornei o presidente da Cufa global, quando a experiência brasileira transbordou as fronteiras do Brasil. 

 

LF: A população negra é desproporcionalmente atingida pela pandemia. Por quê? 

PZ: Isso é o reflexo do racismo estrutural brasileiro, em que o naufrágio é geral, mas o afogamento é seletivo. O racismo é parte disso, ele estrutura essa relação desigual e injusta. A prova está aí. O acesso à saúde, à informação, à qualidade de vida: tudo prejudicado devido à questão do racismo.

 

LF: Quais os suportes e projetos estão sendo oferecidos pela Cufa nas favelas brasileiras?

PZ: Nesse momento, apenas ações emergenciais. Os projetos estão todos fechados, como "Audiovisual nas Favelas" e o "Top Cufa", devido ao lockdown. Estamos na zona emergencial. Lançamos a segunda edição do ‘‘Mães da Favela" e estamos aí arrecadando comida, material de higiene, limpeza e dinheiro para essas mulheres.
 

LF: Qual é a gravidade da falta do auxílio emergencial dentro das comunidades hoje?
PZ: É muito grave. Diferente do ano passado, que ainda tinham doações - esse ano deve ter caído 80%. Diferente do ano passado, que o auxílio era R$650,00 e agora é R$250,00. Diferente do ano passado, que você não tinha tanto esse colapso do sistema de saúde. Hoje, ainda tem o adicional das novas setas da Covid-19, que aumenta o número de contágios. Ainda existe o aumento da fome, que é real. E com o auxílio do ano passado, a gente tem pesquisa do Instituto Data Favela que indica que 96% das famílias compraram comida. A maioria comprou comida para amigos e parentes. Então, você imagina o impacto na vida dessas pessoas.

LF: Como você avalia a adaptação do modelo de ensino remoto pelos alunos da periferia? As aulas on-line são acessíveis?

PZ: Não são acessíveis porque não há internet para todos. Às vezes tem um celular, mas não tem dados móveis. A gente, inclusive, doou 500 mil chips por meio do "Mães da Favela" para que essas mães tenham acesso à internet, com pacote num valor social de telefonia. Levamos essa acessibilidade de internet e dados para mais de 500 mil mulheres.

 

LF: Qual sua expectativa para o futuro das periferias brasileiras em relação à Covid-19?

PZ: Diante desse quadro, eu queria ter uma perspectiva boa, mas estou vendo o sacrifício de uma população que está segurando os serviços essenciais nas costas. Pessoas que estão arriscando as suas vidas e não estão tendo direito ao isolamento nem estão na lista dos prioritários para a vacina. Eu estou falando da mulher que limpa o hospital, das pessoas que estão trabalhando na farmácia, outras pessoas que estão na atividade de limpeza urbana e aí é difícil. Agora sem economia, sem comida e sem vaga nos hospitais, se a pessoa adoecer, já era. Então, é um clima extremamente perigoso e muito ruim para a população mais pobre.



 

 

Referências:

 

CENTRAL Única das Favelas. [S. l.], 2021. Disponível em: http://cufa.org.br. Acesso em: 18 mar. 2021.

 

ESTUDO mostra as chances de óbito por Covid-19 entre trabalhadores formais do RJ. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, [S. l.], p. 1-1, 6 nov. 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=36979&Itemid=8. Acesso em: 18 mar. 2021.

 

INSTITUTO POLIS. Abordagem territorial e desigualdades raciais na vacinação contra Covid-19. [S. l.], 2021. Disponível em: https://polis.org.br/estudos/territorio-raca-e-vacinacao/. Acesso em: 18 mar. 2021.

 

MÃES DA FAVELA. [S. l.], 2021. Disponível em: https://www.maesdafavela.com.br​. Acesso em: 18 mar. 2021.

 

PNAD COVID19: 22,7% das pessoas que realizaram testes para coronavírus até novembro testaram positivo. Agência IBGE Notícias, [S. l.], p. 1-1, 23 dez. 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29770-pnad-covid19-22-7-das-pessoas-que-realizaram-testes-para-coronavirus-ate-novembro-testaram-positivo. Acesso em: 18 mar. 2021.


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