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24/09/2021 às 09h58min - Atualizada em 24/09/2021 às 09h31min

100 anos de Paulo Freire: um brasileiro que merece ser celebrado

“Extensão ou Comunicação?”, uma das obras de Freire, destaca a importância de valorizar os diferentes saberes e a comunicação entre os indivíduos

Ianna Oliveira Ardisson - Editado por Talyta Brito
Fonte/Reprodução: Google
Paulo Freire é um dos pensadores mais citados, na área das Ciências Humanas, em todo o mundo. Um intelectual mundialmente lido e conhecido e que precisa ser ainda mais difundido em sua própria terra. Foi alguém que lutou contra as desigualdades sociais e que se indignava diante delas. Preocupava-se com a questão do analfabetismo e com as consequências dele na relação do ser com o mundo que o rodeia. Um ser humano sensível às questões sociais, sonhador e cheio de esperança. Se estivesse vivo, Paulo completaria 100 anos no dia 19 de setembro. 
 
Para nos ajudar a conhecer um pouco mais de Paulo Freire, o educador Daniel Santos Braga, colaborou com algumas análises sobre Freire e também sobre a obra “Extensão ou Comunicação?”. Braga é professor universitário e pesquisador em Políticas Públicas Educacionais e Gestão da Educação. Ele leciona em cursos de formação de professores do Centro Universitário Newton Paiva e na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG - Ibirité).
 
“Paulo Freire foi um dos grandes educadores e um dos grandes pensadores da educação do Brasil. Digo educador e pensador, porque ele teve tanto uma trajetória de atuação prática, quanto no desenvolvimento de uma teoria do conhecimento”, analisa Daniel Braga.
 O professor conta um pouco sobre a “vocação docente” de Freire que “começou ainda na adolescência, quando – após a perda de seu pai – se tornou auxiliar de disciplina e, em seguida, professor de língua portuguesa para custear a bolsa de estudos da escola que estudava em Recife, sua cidade natal, cargo que continuou a exercer durante sua graduação em Direito. Depois de se formar, continuou trabalhando como professor, agora do ensino superior”. Ele elenca ainda outras atuações de Paulo Freire no campo educacional:
  •  foi diretor do SESI;
  • se envolveu em projetos como o do Instituto Capibaribe, o de Alfabetização de adultos (quando coordenou a experiência de Angicos, no Rio Grande do Norte) e o Programa Nacional de Alfabetização;
  •   no exílio, época da Ditadura Militar, se dedicou à sistematização de uma teoria do conhecimento que buscava a proposição de uma educação como prática da liberdade;
  •  tornou-se secretário municipal de educação de São Paulo, ao retornar do exílio.
“Vale a pena conhecer a vida e a obra de Paulo Freire pois ele não era alguém que “enxergava a educação do lado de fora”. Pelo contrário, ele era um profundo conhecedor da realidade educacional brasileira em todas as suas dimensões, desde a educação básica, superior, profissional, não formal, além da gestão escolar e da gestão do sistema educacional. Mais do que apenas conhecedor, vale a pena conhecer seu pensamento, por ser Freire alguém que criticava, mas que ao mesmo tempo, se dedicava apaixonadamente pela educação, não apenas como uma profissão, mas como uma causa”, pondera Braga.
“Extensão ou Comunicação?” é uma das obras de Paulo Freire, livro relativamente desconhecido e que não se encontra entre os mais vendidos e nem é fonte das citações mais famosas do autor. “Se trata de um ensaio escrito no exílio (Chile, 1968), no mesmo ano de produção de Pedagogia do Oprimido, obra seminal de Freire.  Em Extensão ou Comunicação?, o autor tece reflexões a partir de um caso concreto de uma ação extensionista, quando os técnicos agrícolas de uma universidade intentam levar saberes construídos na academia para populações camponesas. Para Paulo Freire, esse modelo de ação é fundamentado em uma compreensão de mundo e de educação na qual existem lugares (e pessoas) legitimados para a produção de conhecimento, enquanto outros lugares e pessoas – despossuídos desses saberes – os receberiam de forma tutelada”, sintetiza Daniel.

O professor percebe na obra a crítica de Paulo Freire sobre a concepção extensionista, a qual “desconsidera que as pessoas, por mais simples que sejam, também fazem leituras de sua própria realidade, assim como também são sujeitos históricos e produtores de saberes. Esses saberes, ainda que de natureza distinta daqueles produzidos nas universidades, são tão válidos quanto”. Para Freire, então, o movimento de extensão universitária, que leva saberes da universidade para a comunidade, precisava ser ressignificado. “Ou seja, as relações entre a universidade e a sociedade deveria consistir em um processo que se dá pela troca, pelo diálogo e pelo aprendizado mútuo, enfim, pela comunicação; combatendo convicções que justificam a prática da transferência de conhecimento (o que, no pensamento freiriano, é chamada de educação bancária)”, explica Daniel.
 
Daniel Braga apontou a obra “Extensão ou Comunicação?” como sua favorita de Paulo Freire e explica o porquê:
 
“Essa obra contribuiu muito com minha formação pois ela, de alguma maneira, me relembra minha trajetória de vida. Antes de fazer faculdade, eu fui operário de fábrica. Trabalhei como ajustador e de usinagem (torneiro mecânico) em fábricas de Belo Horizonte e da região metropolitana da capital mineira. Nessa minha vivência profissional, tive muitas amizades e aprendi muito com meus colegas, não só saberes relacionados ao trabalho, mas de como eles enxergavam e liam a realidade. Quando ingressei no ensino superior, e fiz mestrado e doutorado, sempre tive a impressão de uma certa noção de superioridade intelectual que ronda a academia. Um certo entendimento (velado e nunca dito) de que nós, professores universitários e cientistas, detemos o saber, e que cabe a nós iluminar os caminhos daqueles que ainda não são esclarecidos. Esse pensamento, arrogante e prepotente, faz com que muitas vezes, nos posicionemos de forma autoritária em relação as pessoas que, por qualquer motivo, não passaram pelos bancos do ensino superior. Na verdade, qualquer pessoa, por menor que seja seu grau de instrução, tem capacidade de ler a realidade, “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Daí, por isso considero essa obra de Freire a minha preferida.  Porque ela exige de mim uma constante reflexão sobre minha postura em relação a todos que estão a minha volta e um posicionamento em favor da horizontalidade, da radicalidade democrática e do respeito por todos os diferentes saberes.”

É preciso olhar para o livro “Extensão ou Comunicação?” e considerar o período em que foi escrito. Daniel Braga ressalta que, com o passar do tempo, muitas coisas mudaram e hoje tem acontecido o processo de “curricularização da extensão”, ele esclarece:
“Apesar de Freire sugerir a palavra (e a ideia) de comunicação em detrimento de extensão, é preciso considerar que a escrita da obra “Extensão ou Comunicação?” se deu no final dos anos de 1960. De lá para cá, muita coisa mudou, inclusive com a constitucionalização do princípio de indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão nas universidades brasileiras. Atualmente, estamos passando pelo que chamamos de curricularização da extensão, que é o processo de tornar a extensão mais orgânica na organização universitária do país, se tornando obrigatória na composição de, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação. Além disso, na atual concepção de extensão, se leva em conta a interação dialógica da comunidade acadêmica com a sociedade por meio da troca de conhecimentos, da participação e do contato com as questões complexas contemporâneas presentes no contexto social.”

Daniel destaca as mudanças que ocorrem nas últimas décadas no ensino superior brasileiro como as políticas de ações afirmativas (cotas), expansão do ensino superior público (Reuni) e o financiamento de estudos (FIES e PROUNI):
“Porém, o pensamento freiriano exposto em “Extensão ou Comunicação?” continua válido. Ainda mais porque nas últimas décadas, passamos por um processo intenso de modificação do perfil do ensino superior brasileiro. As políticas de ações afirmativas (cotas), expansão do ensino superior público (Reuni) e mesmo o financiamento de estudos (FIES e PROUNI) permitiu que públicos que até então estavam fora da universidade, passassem a ocupar seus espaços. Mas não basta que as portas estejam abertas, é preciso que as concepções da universidade também se abram para outros saberes, outras leituras de mundo.”

O professor Daniel entende que a universidade precisa oferecer o conhecimento aplicado para atender as demandas da sociedade, da mesma forma que precisa abrir suas portas para os diferentes saberes que os atores sociais produzem. “Afinal, como nos mostra Freire, ninguém ensina nada a ninguém; ninguém aprende nada sozinho; os homens e as mulheres se educam mutuamente mediados pelo mundo”, conclui.

Paulo Freire valoriza o ser humano e a vocação que temos para “ser mais”. Entretanto, infelizmente, a relação oprimidos e opressores limita, por vezes, nossas possibilidades de crescimento. “Para Freire, uma das características dos seres humanos é a sua vocação para ser mais. Nós, como espécie, não estamos submetidos ao determinismo biológico do instinto e temos a potencialidade, por meio do trabalho e da cultura (entendidos como transformação racional e intencional da natureza), de sermos sujeitos que constroem sua própria história. No entanto, as relações desiguais da nossa sociedade limitam essa potencialidade uma vez que uns exerçam domínio sobre outros. Oprimidos e opressores, que muitas vezes, estão tão imersos nessa relação, que nem mesmo a percebem. Com isso, a vocação ontológica humana de ser mais é silenciada. A educação bancária é um reflexo dessa relação de opressão, em que um sujeito, que se arvora na posição do detentor do conhecimento, ‘deposita’ um conjunto de saberes em outro sujeito, que se utiliza desses saberes para sua subsistência”, avalia Daniel Braga.

Ao ler as obras de Freire, conhecer um pouco da atuação dele, assistir a alguma das entrevistas feitas com ele, é nítida a bondade e amor em suas falas e ações. Sobre essa bondade e amorosidade Daniel Braga fez também algumas considerações.
“A questão da bondade e do amor em Freire tanto está ligada às suas características pessoais, mas também em relação à sua epistemologia. Em suas entrevistas, nos relatos das pessoas que trabalharam com ele, nas lembranças de sua companheira Nita Freire, tudo nos leva a crer que Paulo Freire era uma pessoa aprazível, amável, terno e afetivo. No entanto, amorosidade também era uma ideia-força, parte de sua teoria do conhecimento. Para Freire, uma educação como prática da liberdade só é possível em dialogicidade, e o diálogo só é possível quando duas ou mais pessoas, mediadas em sua relação com o mundo, se abrem, horizontalmente para isso. O amor é o oposto da opressão: enquanto esta diz respeito ao domínio de um sobre o outro, a amorosidade é o respeito ao outro em sua essência”, analisa.

Daniel pondera ainda que a compreensão de mundo em Freire está, em parte, ligada à formação e prática religiosa dele. Visto que ele era cristão, católico, ligado a uma vertente humanista do catolicismo. O pesquisador enxerga muito das palavras de Freire nos ensinamentos dos evangelhos, em especial nas mensagens de Jesus Cristo sobre o ‘amar ao próximo como a si mesmo’. Acrescenta ainda que muito dos trabalhos de Paulo Freire estão ligados diretamente à sua atuação nas Pastorais católicas e nos movimentos eclesiásticos de base. Sobre uma decisão que Freire precisou tomar durante o exílio, em que teve que escolher entre a Universidade de Harvard e o Conselho Mundial das Igrejas como lugar de trabalho, Daniel percebe na opção escolhida a disposição de Paulo Freire em estar próximo aos excluídos:
“É interessante que, em 1969 durante o exílio, Paulo Freire foi convidado para trabalhar em dois lugares: a Universidade de Harvard e no Conselho Mundial das Igrejas (principal entidade ecumênica cristã em nível mundial). Freire optou pelo Conselho e justificou dizendo que temia deixar a América Latina e perder o contato com o concreto, vivendo em bibliotecas e entre livros; e que o conselho lhe permitiria ver a situação real, das pessoas reais, das necessidades reais. Então, penso que essa postura é muito próxima a de Jesus, que ocupava seu tempo mais entre as pessoas, principalmente entre aquelas que eram as mais excluídas (nas palavras de Freire, as “descamisadas do mundo”) do que nas sinagogas de seu tempo.”

Percebo Freire como um verdadeiro educador no qual cada um de nós pode buscar inspirações para o ensinar e aprender. Sua atuação baseada no amor, e se importando com o ser humano, com certeza, deixou marcas muito além do que pode ser documentado. Em uma entrevista concedida ao jornalista Edney Silvestre, na Rede Globo, meses antes de falecer no ano de 1997, Paulo Freire respondeu sobre como gostaria de ser lembrado:
“Gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida!” declarou 

 

 

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