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17/10/2021 às 17h36min - Atualizada em 17/10/2021 às 15h49min

Coreia do Norte: O contraste entre a riqueza bélica e a pobreza do povo

Grande parte da população vive em extrema pobreza enquanto o governo investe em armas nucleares

Ana Narracci - Editado por Ynara Mattos
WSCOM / El País

No último dia 28, a Coreia do Norte afirmou através da agência estatal KCNA ter disparado com sucesso em direção ao mar um novo míssil hipersônico desenvolvido pelo país. O míssil, batizado de Hwasong-8, representa mais um degrau na escalada armamentista do regime de Kim Jong Un, cujos investimentos em defesa chegariam, segundo analistas, a US$ 10 bilhões por ano.

Armas hipersônicas são mais rápidas que as existentes, pois podem atingir uma velocidade de 6100 km/h, cinco vezes maior que a velocidade do som, além de terem menor probabilidade de detecção por sistemas antimísseis. Na contramão deste bilionário investimento, a Coreia do Norte enfrenta recorrentes apagões de energia, escassez de alimentos e tem cerca de 40% de sua população em situação precária de sobrevivência. Quais seriam, então, as prioridades do governo norte-coreano e por que um país tão rico militarmente permite que sua população viva em extrema pobreza?

ARMISTÍCIO x NOVA GUERRA FRIA - UM RÁPIDO PASSEIO PELA HISTÓRIA

Após a Segunda Guerra Mundial houve uma divisão da península coreana. O Sul teve a influência capitalista dos Estados Unidos e o Norte aliou-se à União Soviética, socialista. Em 1950, após várias tentativas de derrubar o governo sul-coreano, o Norte invadiu Seul, capital da Coreia do Sul, dando início a um conflito armado conhecido como Guerra da Coreia, que deixou um saldo de cerca de 4 milhões de pessoas mortas, em sua maioria civis, e contou com o envolvimento de diversos países, como a China e os Estados Unidos. O conflito teve fim em 1953, quando, após a ameaça do uso de armas nucleares por parte dos Estados Unidos, foi assinado um Armistício, ou seja, houve um cessar-fogo, que levou à criação de uma área desmilitarizada entre os dois países que seguiam separados, sem uma solução pacífica definitiva.



Mesmo com este aceno de paz, as diferenças entre as Coreias permaneceram. O sul, capitalista, desenvolveu-se fortemente a partir da década de 1960, destacando-se no mercado internacional a partir de 1970 e se tornando um modelo de desenvolvimento econômico. Já no Norte, as coisas não aconteceram da mesma forma: Kim Il Sung, escolhido por ordem de Josef Stalin, líder soviético à época da divisão das Coreias, passou a dirigir o regime mais fechado do mundo. Após a guerra, o Norte teve, por cerca de uma década, desenvolvimento similar ao vizinho do Sul, porém, a partir dos anos 1970, a Coreia do Norte teve uma perda econômica progressiva com perdas significativas na área da mineração, onde buscava crescimento industrial. Nos anos 80, o regime buscou forças no apoio da União Soviética que ampliou seu apoio financeiro ao país, mas teve  mais um grande declínio com o fim do regime soviético em 1991.

Kim Il Sung, o líder norte-coreano, construiu uma imagem de divindade junto ao povo. Conhecido como "Sol da Nação", passou a ser visto como um líder perfeito, que jamais cometeria erros. A Coreia do Norte se fechou e criou uma verdadeira realidade paralela, onde o líder supremo defende seu povo e dita a ele o comportamento que deve ser seguido enquanto defende o país do grande inimigo pronto a atacar: o Sul, aliado aos Estados  Unidos
 


Segundo a ideologia juche, criada por Sung, a massa trabalhadora somente consegue chegar ao verdadeiro socialismo se construir uma nação auto-confiante. Para isso, seria necessário ter uma economia própria e forte, independência política e autonomia militar. Os trabalhadores seriam a força motriz desta construção. A soma desta ideologia ao temor de um suposto ataque iminente do Sul contribuíram para o isolamento da Coreia do Norte, que passou a privar seu povo de qualquer contato  e portanto, de ter conhecimento  com o mundo exterior. Tudo é controlado pelo regime desde as profissões a serem exercidas pelos cidadãos até seu corte de cabelo. A imprensa passou a ser unicamente porta-voz do governo e os Norte-Coreanos foram proibidos de deixar o país, fazendo com que não tivessem mais qualquer contato com familiares que vivessem do outro lado da fronteira.

A morte de Kim Il Sung, em 1994, mergulhou o país em um caos ainda maior. Além do desespero pela perda de seu líder, aquele que controlava cada passo de suas vidas, o povo teve que lidar com uma fome devastadora, fruto do desamparo Chinês, agora único aliado do regime, e de enchentes que devastaram o país entre 1995 e 1996. A montanhosa Coreia do Norte não possibilitou que a própria agricultura fosse suficiente para abastecer o país e com isso, cerca de 3,5 milhões de pessoas morreram de fome neste período. Os sobreviventes alimentavam-se de insetos e folhas. Idosos e crianças tinham as menores oportunidades. Suicídios eram a opção para amenizar o sofrimento de muitos.

Kim Il Sung foi sucedido por seu filho, Kim Jong-Il, que deu seguimento ao governo de seu pai, aprofundando-se na questão militar. Desde a década de 1980 já era cogitado que a Coreia do Norte possuía um programa nuclear, que resultou na assinatura de um tratado de não proliferação de armas nucleares em 1994 com os Estados Unidos. Ignorando o acordado, Jong Il decidiu fortalecer e ampliar seu programa nuclear, defendendo como principais razões a geração de energia nuclear para abastecimento local e também evitar um possível ataque inimigo ao território norte-coreano. Diante desta postura, o mundo foi colocado em alerta e a atenções se voltaram para a península coreana, onde os Estados Unidos declararam que a Coreia do Norte com Irã e Iraque formavam o chamado "Eixo do Mal". A instabilidade levou a Coreia do Norte a abandonar o tratado e três anos depois, em 2006, realizar seu primeiro teste balístico nuclear, aumentando a escalada de tensões. Em 2009, mais um teste. O fantasma da guerra fria voltava a assombrar o mundo.

        No ano de 2011, nova sucessão de poder. Kim Jong Un assume o posto de líder supremo depois do falecimento de seu pai. Cenas de histeria foram captadas em toda a Coreia do Norte e distribuídas ao mundo, mostrando o desespero da população com a morte de seu então líder. Vale lembrar que ao menos sete gerações já haviam nascido e crescido ali tendo apenas as informações passadas e permitidas pelo regime. Nasceram em meio a uma guerra que não existia na prática, mas era o motivo para que o povo suportasse todas as dificuldades em prol de um bem maior: a defesa de seu paraíso, onde poderiam servir ao seu poderoso mentor. Não obstante, o exército da Coreia do Norte possui, em estimativa do governo sul-coreano, cerca de 1,28 milhão de pessoas, enquanto o rival do sul possui 550 mil. Eis a prioridade do governo.


Kim Jong Un segue radicalmente a postura de seu pai e de seu avô, fortalecendo o discurso militarista do país. Seguidas ameaças foram feitas contra os Estados Unidos através da mídia estatal norte-coreana, com palavras de grande apelo como "causar aos Estados Unidos dor e sofrimento nunca antes vistos" e propagandas impressas com imagens de destruição do país inimigo. Novos testes nucleares foram realizados em 2013, 2014, 2016 e 2020. Incansáveis tentativas de reaproximação com a Coreia do Sul e os Estados Unidos suspenderam estes testes em algumas ocasiões, porém a Coreia do Norte insiste em continuar. Seria esta uma moeda de troca com o exterior? Talvez a única forma de negociar para não deixar seu povo sucumbir definitivamente.















De acordo com Natanael dos Santos Pires, professor de história e fundador do canal do YouTube "Jornada na História",

 

"A Coreia do Norte, por não ter força comercial de negociação com outros países, usa o poder militar para manter a imagem de um país poderoso, indestrutível, capaz de enfrentar seus inimigos. Sustenta a premissa de que nada e nem ninguém poderia detê-los além de que eles não abaixariam a cabeça para qualquer regime, pois são supremos, fortes e únicos".
 

O povo norte-coreano, diante de toda a auto confiança pregada por seu líder, encara suas dificuldades como pequena diante da grande ameaça externa iminente. É preciso estar pronto, é preciso estar atento a qualquer passo do inimigo. E a única informação a respeito vem das notícias que o regime divulga ao povo. Obviamente não existe uma ideologia sem questionamentos, apesar deles não serem bem vindos na Coreia do Norte. Desertores do regime são tratados com veemência: envio a campos de trabalho forçado ou execução pública. É imensa a lista de proibições que podem levar a estas punições, desde ouvir uma música internacional (sim, esta que talvez você esta ouvindo em seu player enquanto lê esta  matéria) até tentativas de fuga através das fronteiras. Qualquer ajuda humanitária é vista como ato criminoso, desrespeito às leis locais. A esperança de dias melhores para o povo norte-coreano vem daqueles que tem a dádiva de ter sucesso na fuga e descobrem que existe outro universo além das tão temidas fronteiras.

No cenário atual, é improvável uma mudança de regime sem haver um sofrimento civil ainda maior e até a perda de milhares de vidas. O grande inimigo do povo norte-coreano não vem de fora, mas sim de suas próprias mentes e este é um campo de batalha de difícil acesso para o qual o governo conhece bem o caminho. Acompanhemos os próximos capítulos.


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