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30/06/2020 às 03h53min - Atualizada em 30/06/2020 às 03h53min

Apenas 8% das salas de cinema no Brasil contam com recursos de acessibilidade

Se emocionar é um direito de todos

Alan Magno - Editado por Bárbara Honorato
Correio do Povo

“Historicamente, as pessoas com deficiência sofreram várias violações dos seus direitos, tais como o direito à educação, ao mercado de trabalho e à cultura, dentre outros. Os modelos caritativo e médico relegaram essas pessoas a um papel secundário na sociedade”. A declaração é do Consultor em Acessibilidade, Klístenes Braga, e reflete a realidade sentida na pele por mais de 45 milhões de brasileiros, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), essa é a quantidade aproximada que representa os 23,9% da população do país que possui algum tipo de deficiência.


Nesse contexto, para o consultor, essas pessoas vivem uma batalha diária por direitos, nas situações mais simples do cotidiano e embora o Brasil conte com leis voltadas para a assistência, apoio e inclusão da pessoa com deficiência desde o ano de 1989, a realidade cotidiana mesmo nas situações mais simples, como ir ao cinema, é marcada por lutas constantes. E para Miriam Marques, 19, estudante de ciências biológicas na Universidade Federal do Ceará e cadeirante, é importante lutar porque as pessoas com deficiência possuem tantos direitos quanto qualquer outra pessoa em qualquer situação. “não merecemos ser excluídos ou humilhados por sermos "diferentes" “ completou.
 

Pelo Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, é de responsabilidade do poder público assegurar dentre outros direitos o “pleno exercicios de seus direitos básico, inclusive do acesso à cultura”. Porém, levantamento feito pela Agência Nacional de Cinema, Ancine, agência responsável por regulamentar a produção cinematográfica brasileira e a distribuição de produtos cinematográficos em todo território nacional, revela que apenas 8% das salas de cinema contam com recursos de acessibilidade isso equivale a 269 das 3300 salas de cinema de todo país.

 

“É um retrocesso da sociedade, uma exclusão. Somos a minoria marginalizada, onde todos crescem pensando que não temos dificuldades, mas temos e muitas! A sociedade não está preparada para nós” desabafa a arquiteta paulista, Ana Costa*, de 31 anos que tem deficiência auditiva.

 

LUTA POR ACESSIBILIDADE

 

O principal amparo jurídico na busca por acessibilidade no Brasil são as diretrizes firmadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. O estatuto foi idealizado com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU e é hoje um dos principais guias do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade) e assume como proposta estabelecer as diretrizes e normas gerais, bem como os critérios básicos para assegurar, promover e proteger o exercício pleno e em condições de igualdade de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania plena e efetiva.

 

A primeira versão do estatuto foi endereçada ao Ministério Público Federal em 2013, sendo sancionado como lei em 6 de julho de 2015. Tal estatuto fundamentou a Instrução Normativa nº 128 de 13 setembro de 2016 da Ancine que previa total acessibilidade em todas as salas de cinema do Brasil até setembro de 2019, porém, de acordo com a Ancine tal objetivo era tecnicamente inviável e a agência recorreu na justiça diversas vezes para tentar aumentar o prazo para atender as determinações de total acessibilidade.

 

Klístenes, que além de consultor em acessibilidade também é pesquisador do Grupo LEAD (Legendagem e Audiodescrição) da Universidade Estadual do Ceará, e já conta com 11 anos de carreira, tendo trabalhado na audiodescrição de cerca de 50 filmes, afirma que nessa busca por acessibilidade é preciso que todos os envolvidos revejam atitudes, e estejam dispostos a quebrar barreiras comunicacionais e também culturais. “E trabalhando juntos, cineastas, realizadores, produtores, gestores, pesquisadores, consultores e pessoas com deficiência poderão fazer valer um cinema para todos” completou.

 

A Ancine por sua vez, conseguiu estender o prazo, atualmente, as salas de cinemas comerciais têm até o dia 01 de Janeiro de 2020 para cumprir todas as adequações, isto é, passarem a apresentar em 100% das salas de todo país, tecnologia assistiva voltada à fruição dos recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais. Além de contar com rampa de fácil acesso para pessoas com baixa mobilidade, obesos e cadeirantes.

 

Em nota a Ancine afirmou que “prazo é tecnicamente inviável, devido a complexidade do processo de tradução para LIBRAS que envolve investimentos diretos em qualificação de intérpretes além da importação de tecnologia”, além disso, a agência também demonstra preocupação com o pouco tempo pois segundo ela, não haveria tempo para testar a aplicação prática das tecnologias assistivas. A Ancine também reforçou que tem “tomado medidas visando atender aos prazos definidos e cumprir com as determinações do estatuto da pessoa com deficiência”.

 

Miriam por outro lado afirma encontrar uma realidade diferente ao ir no cinema, sobre as medidas de acessibilidade para cadeirantes, afirma, “Eles tentam, de uma maneira engraçada até. Têm o espaço reservado para cadeirantes mas fica muito baixo, então no mínimo sairia com uma dor no pescoço” revela. “Eu não posso julgar pois não sei se é porque não testam ou se realmente é porque não se importam”, a estudante ressalta que para conseguir usufruir de forma adequada do cinema tem de procurar um cinema que apresente rampa e sempre senta em uma poltrona comum, Miriam faz um apelo para que revejam a demarcação do espaço reservado para cadeirantes.

 

Dentro dessa realidade, a paulista Ana Costa* afirma que fica magoada quando as pessoas acham que os deficientes se fazem de vítima, quando não tentam entender as reivindicações exigidas por eles. “proporia a elas a viver uma semana na nossa pele, pois não é fácil lidar com todo o despreparo que há na sociedade”. A arquiteta pede empatia e reforça a necessidade de se discutir, lutar e trabalhar ações de inclusão e acessibilidade, pois “A falta de inclusão gera ignorância”

 

Com 24 anos, o cearense professor de história e deficiente visual, Lucas de Oliveira afirma que é importante que as pessoas possam se conscientizar de que todos, independe de deficiências ou não, são seres humanos. “Não é certo que alguns não possam ter os mesmos direitos que outros só por terem nascidos diferentes”, ressalta. Para o professor não existe uma forma suave de se tratar essa ausência de acessibilidade, quando perguntado sobre o que faltava para tornar os cinemas acessíveis, foi direto “boa vontade”.

 

Miriam, concorda com esse ponto de vista e afirma “talvez só falte interesse ou um pouco de sensibilidade com o outro”. Dentro dessa lentidão em garantir plena acessibilidade, a cearense Maria Eduarda que tem deficiência auditiva, afirma “Já era pra existir isso, mas parece que o povo não pensa na gente”. “eles não se importam em incluir com tanto que esteja tendo vendas”, desabafou a arquiteta,  Ana Costa*

 

NADA SOBRE NÓS, SEM NÓS

 

Esse é o lema assumido pela luta das pessoas com deficiência e reforça a ideia de uma coletividade fortemente unida na busca por direitos. Dentro dessa perspectiva, a comunidade de pessoas com deficiência, organiza-se por iniciativa própria, para pressionar os órgão públicos responsáveis pela implementação dos recursos técnicos que irão lhes proporcionar acessibilidade.

 

Exemplo dessa situação é o caso do abaixo assinado criado pela analista de sistemas e estudante de pedagogia, Carol Correia de 37 anos. Carioca, surda e mãe. Ela criou uma petição online que exigia legendas descritivas e em Libras para o filme “Turma da Mônica: Laços”, em pouco mais de um mês o abaixo assinado já contava com mais de 114 mil assinaturas. Carol criou o abaixo assinado como uma tentativa de reivindicar seus direitos, para ela, um simples programa em família pode se tornar um grande drama devido a falta de acessibilidade. Ouvintes não precisam de legenda se o idioma desses filmes é português, mas os surdos sofrem” declara.

 

Carol afirma que o fato dos filmes nacionais não apresentarem legendas em português e muito menos em libras, além de toda a falta de acessibilidade nos cinemas a afeta profundamente. Na petição ela reforça que a busca pelos direitos das pessoas surdas é uma busca diária, “Pense o que faria se tivesse que conviver com a surdez ou ter um familiar surdo, muitos momentos se perdem e preciso lutar para garantir que minhas filhas tenham minha presença nesses momentos tão especiais” e em entrevista complementa “Gostaria que todos os cinemas do Brasil respeitassem as acessibilidades para os surdos e principalmente para as crianças surdas!”.

 

A carioca Evânia Oliveira, mais conhecida como Eva, é mãe do Gabriel, um pequeno amante de cinema com 13 anos e que tem baixa mobilidade. Ela reforça a necessidade de que todos lutem por acessibilidade, não só no cinema, “pra gente que é mãe isso é muito importante, sabe, muito bom você saber que você pode levar o seu filho no cinema, em qualquer lugar e que ele não vai se sentir “constrangido” nem nada disso”. “Que aquele ambiente tá preparado para receber uma criança assim, pra gente que é mãe isso é muito bom, todos os lugares deveriam ser assim”, completou

 

O apelo feito por meio da petição teve tanta repercussão que no dia 13 de maio, 14 dias antes da estreia do filme, a distribuidora responsável pela produção cinematográfica, afirmou no perfil oficial da franquia no Instagram que o filme será 100% acessível, contando com legendas, legendas descritivas, legendas em Libras e audiodescrição. Porém a disponibilidade das seções com tais recursos são de responsabilidade das companhia de cinema.

Para Carol, tamanha adesão e a resposta positiva da produtora do filme não foi uma surpresa, “Criei a petição com muita fé para que eu possa assistir o filme com minha filha”, afirmou.  Na opinião de Eva, a adequação de todos os filmes e salas de cinema para atender a todos, sem nenhum tipo de exclusão "É uma coisa que tem que ser feita, sabe, é o justo, é o mínimo esse tipo de coisa. É direito deles (pessoas com deficiência) e tem que ser feito, acho que não é um favor não".

 

Na opinião do audiodescritor cearense, Klístenes, tornar um filme acessível é assegurar o direito de acesso à cultura, à informação e à interação social das pessoas com deficiência. Enquanto profissional e pesquisador de tecnologias assistivas ele prova os produtores cinematográficos do Brasil, “Reinventem-se! Olhem para o acesso das pessoas com deficiência, principalmente daquelas com deficiência sensorial, como uma grande oportunidade de releitura do jargão "luz, câmera, ação!" “

 

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*Nome fictício, a fonte preferiu não ter sua identidade revelada
 

 

 


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