Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
25/08/2020 às 00h43min - Atualizada em 25/08/2020 às 00h41min

Quem mais se importa com a vida?

Alucinação ou talvez mais um dia no Brasil

Junio Silva - labdicasjornalismo.com
As vendas de Rivotril aumentaram 22% só nos dois primeiros meses de pandemia no país. Mas, parando pra pensar, não seria preciso nem pegar esses dados do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) ou colocar a culpa só no coronavírus pra sacar que, em um Brasil cada vez mais parecido com uma viagem de ácido, os remédios tarja preta fossem ganhar espaço na vida de muitos.

Talvez nem o mais criativo, insano e melhor roteirista do mundo fosse capaz de criar cenários tão desastrosos e surreais como vêm sendo a realidade.

Em questão de segundos, as coisas acontecem. E chegam até a atropelar outras, fazendo com que vários absurdos passem despercebidos. Mas alguns, mesmo com a normalização do absurdo, não têm como engolir. 

Parecia que nada podia ser pior que o caso da criança de 10 anos engravidada, depois de ser estuprada pelo próprio tio, e toda polêmica formada depois que a história caiu na boca do povo.

Mas aí veio a discussão entre religião, legislação e a militância.

Patifaria das grandes.

Um lado querendo impedir o aborto, assegurado por lei em casos como esse aqui no Brasil. O outro, protestando, de diversas formas, contra os que achavam aquilo um absurdo, um pecado mortal.

O lance é que, ao menos na teoria, o país onde vivemos é um estado laico. E nessa configuração de jogo, a religião precisa ser respeitada, mas deve ter o mesmo papel que um café com leite nas brincadeiras de pique. Sem intervir e nem pesar a balança em algumas decisões.

E já que a democracia é um joguinho onde a maioria busca seguir as regras, a lei foi cumprida e o procedimento de aborto – mesmo indo contra a religião de alguns cristãos – foi autorizado.

Brasil, um país onde os fracos de estômago devem evitar os jornais.

Se a coisa já não devia estar fácil para o médico responsável por fazer o aborto - que já foi excomungado pela Igreja Católica duas vezes por participar de outros procedimentos semelhantes-, ele ainda precisou ouvir gritos que o chamavam de assassino, no dia em que a criança chegava ao hospital no porta-malas de um carro, tentando evitar toda a multidão que fazia vigília e protestava em nome da fé.

Mesmo que alguns não concordem, os religiosos até que tinham um pouco de direito em estar ali, afinal, a democracia dá voz a todos.

O que pega é que, às vezes, parece ser bem mais fácil gozar com o pau do outro.

Tentar impedir que uma criança de 10 anos, sem corpo e maturidade o suficiente para ser mãe, abortasse o fruto de um crime, em nome de ensinamentos e de uma fé que considera isso um assassinato, parece ser uma forma fácil de defender as tradições e crenças religiosas para alguns.

Não todos.

Se conseguissem que o aborto não fosse realizado, já tinham feito algo para manter o que é certo de acordo com seus costumes e crenças. Depois, era só voltar pra casa e continuar a rotina, onde muitas vezes as palavras sagradas se perdem nos pequenos detalhes do corpo a corpo com a vida.

O sentimento de dever cumprido ia ficar, da defesa do que é certo. Já o futuro daquela criança, para alguns, podia ser só uma lembrança vaga.

Pode ser só o jeito errado de ver as coisas, com os olhos de alguém que teve mais dom pra heresia do que para uma vida dividida entre os louvores dos domingos e as merdas durante a semana.

Mas se a questão ali era a luta pela vida, protestar contra o médico que fez, na prática, alguma coisa efetiva para tentar trazer um pouco de dignidade e esperança para o futuro de uma criança que, apesar da pouca idade já viveu coisas miseráveis, parecia meio contraditório.
 
Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »