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27/05/2019 às 19h28min - Atualizada em 27/05/2019 às 19h28min

A visão macabra de uma garota de programa

Luis Antonio - Editado por Millena Brito
Keiny Andrade/Folhapress
Um prédio comum. Já ouvi algumas vezes colegas dizerem que é um prédio bem “atípico” por causa do entra e sai de homens e mulheres durante o horário comercial e por ser de pouco custo. Tem mulheres de todo tipo (a lá Martinho da Vila):
 

 “...de todas as cores, de várias idades, […]
do tipo atrevida
Do tipo acanhada, do tipo vivida,
Casada, carente, solteira, feliz,
Já tive donzela e até meretriz,
Mulheres cabeças e desequilibradas, Mulheres confusas, de guerra e de paz...”

 
Pode ser um exagero dizer isso, mas é verdade. Dos nove andares, qualquer uma está ao seu dispor para satisfazer. Muito longe de ser um Bahamas Club. Como disse no início, um prédio comum, inusitado, muito longe de uma rotina normal, o padrão da sociedade.

O Edifício Itatiaia, localizado no centro de São Paulo, é conhecido popularmente como 134 por tratar do número que se situa, trouxe-me uma sensação de tensão e euforia. Pisando em cada degrau, meu coração palpitava. Era um descompasso que só.
 
Homens conversavam com as garotas na escada, nos arredores. Buscavam qualquer garota seja para dois dedos de prosa ou para saciar os desejos. Nigerianos, bolivianos, nordestinos, os paulistas…todos estavam ali.  Por ser um lugar bem movimentado, lembrou-me do episódio do finado Pânico na Band, quando a equipe comemorou a despedida de solteiro do comediante Eduardo Sterblitch, na Vila Mimosa (RJ).

A  cada andar, sons de forró misturam-se com sertanejo universitário, funk, e muito álcool à vontade. Mulheres chamativas por suas lingeries, bodys, fantasias ou até mesmo com roupas curtas que cobiçavam todos os olhares. Algumas são do tipo panicat. Instigavam o instinto como se olhassem para uma Medusa. Têm aquelas desejáveis sem o padrão de panicat, porém, esbanjavam sensualidade. E por fim, também têm aquelas mais experientes, bem peculiares: são mais velhas de aparência. No entanto, a maturidade talvez fosse a mais importante de atrair a atenção de alguns.

Dá para perceber a disputa de quem se destaca mais que as outras para conseguir seus clientes. Cada uma fazia seu merchan do seu jeito para garantir a comissão ao final do expediente. 20% de cada programa fica para casa e o restante para elas. Têm aquelas que são inconvenientes, insistentes; outras, simpáticas.

Puxam pelo braço, dançam, se esfregam nos visitantes... A sutil inveja entre elas são muito nítidas por cada andar que eu passava. De repente, uma me puxa pelo braço e diz: “Oi gatinho! Vamos namorar gostoso?”
Fiquei na minha e despistei. Deu-me um nó na garganta, um suor na testa...
 
Uma delas, “bem brasil”, com seus dotes avantajados e vestida de babydoll de renda preta e cetim abordou um frequentador e disse: “E aí gatinho, tudo bem? Quer uma titia bem fogosa? Não perca essa chance, pois faço bem gostoso. Olha para mim. Detalhe: Não tem estrias!”. Ele recusou e logo aproximei. Rindo da situação, percebi que é boa de lábia. Chamei para o quarto e perguntei do seu nome. Paula é uma moça robusta e forte, morena café com leite, muito dona de si e não aparentava a idade que tem: 44. Vou adiante.

Ao passar pelo corredor, os quartos de portas amarelas malfeitas e pichadas de canetinha são em forma de divisórias: uns aparentam mais estreitos; outros, longos. Entrei. O cheiro de naftalina da roupa de cama, misturado com o perfume adocicado e o calor abafado causou certo desconforto. Alguns ventiladores estavam quebrados. Um ou outro funcionava, mas não tinha muita potência. Também o cheiro de sexo era bem leve, extremamente marcante.
 
- Primeira vez aqui? - A simpatia iminente de sua pergunta quebrou o meu silêncio e espanto por esse lugar. Aos poucos, quis deixar bem à vontade.
 
- Sim.

- Percebi. Fica tranquilo, ok? Vou te relaxar, pode deixar.
- Você é muito simpático! Não lhe cabe a timidez com toda essa simpatia. Você quer qual período? Disse curiosa e me deixando encabulado. Eu ri.
- Ahn...me explica? Como funciona?
- 15 minutos, R$ 30. 30 minutos, R$ 60.
- Vou querer 30 minutos.
- É casado ou namora?
- Não, sou solteiro. Livre e desimpedido.
- Menos dor de cabeça, não é? (risos) O que você faz?
- Estudo jornalismo.
- Bem interessante essa área. Logo, logo vai entrar na Globo, hein? (risos)
- Quem sabe, né? Quem sabe...
- Olha... apenas quero conversar com você e conhecer sua história, pode ser?
- Tudo bem! - Concordou.
 
Sentados, disse que sempre queria contar suas histórias da rotina como garota de programa e nunca surgiu uma oportunidade. Que sorte a minha! Paula fica durante a semana trabalhando de forma particular atendendo clientes em motéis e hotéis, e fora a 134, em outras casas. Tem um filho de 7 anos que fica com sua mãe, no interior de São Paulo. E quando arruma uma folga, conta os minutos para encontrar com o filho e a mãe. O filho é fruto de um relacionamento conturbado com o ex-marido. Quando separou e sem ter condições de se sustentar, deixou o filho com a mãe e veio para capital para ganhar a vida assim, e nunca mais parou.
 
Ela conta que uma vez num programa, a camisinha rompeu. Preocupada com a situação, tomou a pílula do dia seguinte, fez em clínicas distintas os exames de sangue para detectar alguma DST, HIV ou gravidez. Todos deram negativos. Vida que segue. Menstruava normalmente, mesmo com um fluxo maior devido sua taxa de hormônios ser um pouco alta.

Um dia se sentiu mal e achou que, devido a correria de boate/hotel - que ficava próximo à boate e considerava sua casa temporária - hotel/boate, prejudicou em sua alimentação. Como já tinha gastrite e princípio de úlcera, foi ao gastroenterologista que indicou o Omeprazol para tratar. No dia seguinte, atendeu um cliente em um hotel na região do Jabaquara e voltou a sentir mal novamente.

Terminando o programa, foi à farmácia. Desde que saiu do quarto até a recepção, as cólicas vinham mais fortes. Comprou um Buscopan. Quando voltou para o quarto, tomou o remédio e cobriu-se para se esquentar, pois sentia muitos calafrios. Neste momento, começou a sentir um cheio de enxofre, de velas, flores, gente morta. Era uma de suas visões. Mesmo que tenha sido batizada no catolicismo quando pequena, sempre teve a sensibilidade de sentir, tocar, cheirar e ver. Do nada, seu celular toca interrompendo o ápice da história. Era um dos seus clientes externos.
 
- Faço fetiche, sadomasoquismo, BDSM. Cobro duzentos e cinquenta (reais) de cachê. Seria para quando? Qual local?
Fiquei boquiaberto.
Após desligar o celular, continuou. Após amenizar a dor, tomou seu banho e partiu a caminho de outra casa noturna que trabalhava, em Santana. Passou num lugar para comprar um chá pronto. O atendente deu o pacote de chá e ela saiu, toda nervosa por causa do incômodo abdominal. Entrou e foi direto para o quarto. Pegou um edredom e se cobriu. Por volta de umas vinte horas, as dores ficaram mais intensas. Chegou a pedir para alguém da recepção que passasse de meia em meia hora, para checar se estava bem ou não. Quem passou em seu quarto, foi um travesti, amigo dela, oferecendo água. Tomou quatro cartelas de Buscopan. Quando olhou para o lado que estava escuro, ouviu uma voz que disse:
- Olha para cá! Você está me vendo? Eu sou mais negro que a noite.
- Vai pro inferno!! Não me enche o saco. Respondeu incomodada olhando a entidade.
 
Ao perceber que sangrava mais do que o normal entre as pernas misturado com urina, pegou uma toalha grande e fez em forma de absorvente para conter o sangramento. Levantou e decidiu ir ao banheiro. Logo, viu na porta três pessoas mortas. Foi jogada para o vaso sanitário, no qual sentou corretamente. Relutando para ficar de pé, disse:
- Que droga! Sentava novamente no vaso.
Uma voz daquela pessoa morta, disse:
- Calma cria que vou te ajudar. Não se preocupe. Olhe para mim.
- Que droga! Alguém jogou um gato em cima de mim, na minha perna! Reclamou.
Sentiu o gato a unhando. Depois, algo quente. Era o feto, porque não sabia que estava grávida. Gemendo de dor, perguntou para a voz que segurava seu pescoço:
- Porque não posso olhar para baixo?
- Calma minha cria. Põe sua mão aqui embaixo só para você se arrumar.
Nervosa, colocou a mão e puxou. Era o cordão umbilical. Voltando a si, o cheiro de enxofre ficou mais forte ainda e viu o feto morto no chão. Em seguida, um vulto disse a ela:
- Vim buscar o que é meu. Nada mais justo, minha cria. Vinde a mim, todas as criancinhas.
 
Estava atônito. Tenso. O horário já tinha passado e estava sem dinheiro para cobrir. Eu tive que interromper e perguntei.
- A conversa é muito interessante, mas e agora? Não tenho mais trinta reais. O cara tá te chamando!
- Relaxa. Eu banco o restante. Fica de boa. Logo gritou: Fulano, mais quinze. Põe na minha conta.
Isso é muito raro de acontecer. Neste momento, pensei: Nossa, está bem à vontade! Continuou.
 
- Então… depois que a voz me disse isso não me desesperei, pois vi que o feto estava morto. Falei para voz assim: Você já buscou o que é seu? Cada um no seu quadrado e não me enche o saco. Eu vivo aqui neste plano. E você, viva nesta sua vida medíocre onde está, que nem deveria ter saído.
Calma, se eu fosse você, não ficaria brava; ficaria lisonjeada porque me deu uma paga boa. O que você quiser, vai ter.
Ela baixou a cabeça. A entidade que segurava seu pescoço disse logo em seguida (parecia ignorar o comentário do vulto, acalmando-a:
- Calma, que vou te ajudar. Precisa ser forte, fria e racional; você tem seu filho para criar. Isso daqui não é seu. Não se lamente, nem se doa, nem torture por nada.
 
Recuperada, ainda sentindo dores e o gosto de sangue na boca, puxou a placenta. Respirou fundo. Tomou mais um remédio para amenizar. Limpou o quarto e tomou seu último banho. Descansou um pouco e foi para o hospital. Fez uma microcirurgia. Constatou que perdeu uma criança de aproximadamente, seis meses.

Ninguém da enfermaria acreditou que com seus trinta e oito anos, paria aquela criança. Perdeu entre três e seis da manhã. Diz que neste período, o pessoal do submundo fez festa. No outro dia na boate, suas colegas diziam que tinha feito um pacto com o demônio, mas nega.
Como o horário estava avançado, agradeci pelo período e despedi dela. Desci as escadas do prédio, impressionado com tudo o que aconteceu. Estava quase vazio porque estava fechando a casa. Me veio tais dúvidas na mente: Quem foi aquele cliente? Será que ele engravidou com más intenções ou por inocência? Por que os exames deram negativos e nem percebeu as mudanças que aconteciam em seu corpo? Qual foi a promessa que fez em troca daquela criança aguardada pela entidade? No que ela acredita? O que eram aquelas 3 pessoas mortas? O pouco tempo que fiquei não me trouxe as respostas. Sabe lá quando a verei para responder. Mas o que importa é que ela aproveitou o tempo que tinha para ser ouvida. Histórias como essa refletem a dura realidade vivida por essas profissionais do sexo, todos os dias.

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